Nota de Repúdio à Falta de Criatividade no “Cancelamento"

Al Jaliah


Chegou a nossos ouvidos por diferentes fontes que, a partir do início de nossas atividades, temos causado desconforto a ponto de que tenha surgido contra esta Al Jaliah uma campanha de difamação para nosso “cancelamento”. Tal movimento ficou óbvio a partir do lançamento de nosso blog, com o texto “Sinais Desonrosos”. O que parecia celebrado logo se tornou objeto de uma rede de fofocas demonstrada no revertério de mensagens que nos agradeciam pelo texto, àquelas que o condenariam, somente para serem apagadas, reenviadas e apagadas novamente (os prints existem), num sinal desonroso - e patético - de falta de verve e de disposição ao diálogo. A partir da repercussão deste texto, vimos que nossos seguidores estagnaram, bem como a difusão de nosso conteúdo por parte de pessoas que, antes, não hesitavam em compartilhá-lo.

O que nos parece curioso quanto à repercussão deste primeiro texto, é que, em nenhum momento ele cita nomes. De fato, não foi um texto escrito tendo indivíduos em mente, senão o movimento geral do que entendemos como problemático relativamente à forma que as manifestações pró-palestina, e pró-árabe em geral, têm tomado, especialmente entre a classe-média ilustrada em São Paulo, cidade de onde falávamos. Posto de maneira simples, estas manifestações, conforme as compreendemos, se perdem nas representações, que parecem produzir uma satisfação libidinal pelos símbolos e jargões repetidos ad nauseam em espaços que reproduzem estruturas de exclusão e dominação. Estávamos, parece-nos, corretos. Em resposta, a publicação, foi prontamente atacada por pessoas que angariaram um capital social permitido pelas redes sociais e pelas redes de mercado, não diretamente, mas indiretamente, pela fofoca, que é o tipo mais covarde de violência pública.

Não somos ignorantes às maquinações que o desejo capitalista engendra nas individualidades. A sede por acumulação, seja do capital que for, circunda a todos, e só com muito trabalho de análise conseguimos aceitar e transformar de que modo nossa vida, e nosso mundo, podem ser produzidos de outras formas. No que toca à Al Jaliah, nossa preocupação não é a extração de mais-valia simbólica, capitalizando sobre o sofrimento alheio ou a auto-imagem, mas, como está dito desde nosso manifesto - cuja repercussão entre a audiência brasileira e a internacional é de diferença notória, sendo nossa audiência local delicada demais para a forma do texto - a geração de movimento, diálogo e denúncia perante a injutiça. Tais injustiças, cremos, são denunciadas não pelo ataque pessoal, mas pela reflexão sobre as ideias que as perfazem enquanto tal. Como dito no mesmo texto, não queremos o silenciamento de ninguém. Perdendo-se, como dito acima, nas representações, porém, não foi para nós surpresa que argumentos que publicamos em nosso espaço tenham servido de carapuça.

Não é segredo que, na esfera da subjetivação e da singularidade, as palavras não importam, como bem apontou, um dia, Félix Guattari. Importa a ação. E mesmo que falar tenha seus efeitos, as atitudes individuais efetivas, mais do que elogios e críticas, são o que contam. Nisto, percebemos logo que o meio por nós escolhido não se coaduna com as atitudes empobrecidas daqueles que só têm voz por meio de sua imagem pública, e não por sua competência. Isto, mais uma vez, reproduz as estruturas elementares de dominação, que poderíamos exemplificar teoricamente da sociologia à psicanálise, do Marxismo ao mais raso funcionalismo, da completa oposição entre Hegel e Schopenhauer. Não obstante, o que torna tais atitudes, a princípio simbólicas, por serem do campo da linguagem, perniciosas, é o fato de que elas aproximam demasiadamente aquilo que o mesmo Guattari chamou de “repressão leve” a uma “repressão pesada” sobre um coletivo independente e autônomo, sem filiações senão a própria consciência crítica. Quando um movimento, parcela ou grupo minoritário, numérica e politicamente, é calado desde sua incepção, o que temos é o exercício de um poder coercitivo que visa o desaparecimento do outro. Isso, posto de outro modo, é o princípio ativo que leva ao fascismo, que pretende, por meio de fins que crê justificáveis, lançar mão de meios escusos para dizimar a diferença. No Brasil, esta atitude se torna um clássico pelo mecanismo da fofoca. Esta, porém, esconde uma armadilha: pretensamente um dom da vida privada, ou íntima, ela é a prova da vida do autor. O autor da fofoca não morre, e sua fofoca nunca dura em privado. Em algum momento, a fofoca, este patrimônio imaterial da brasilidade, cai nas graças do povo.

O espalhamento de rumores, as súbitas mudanças de relação movidas por questões ocultas, quando, a todo momento, foi garantido o espaço de diálogo, prefigura não só uma atitude autoritária, posto que embasada na síndrome de autoridade que é outorgada por meio da audiência, mas a um comportamento fascistoide que tem por objetivo o silenciamento e a destruição moral. Quando Florestan Fernandes teorizou que a acumulação primitiva do capitalismo brasileiro se deu sobre a propriedade dos corpos escravizados, apontou para um componente genealógico de nossa sociabilidade. Hoje, este imperativo se mostra, também, arqueológico. A lógica que impera nas atitudes de uma parcela daquilo que é considerado a intelligentsia, especificamente uma que se declara “de esquerda" e, em particular, no caso do chamado mundo árabe, é o de expropriação de toda força e produto do trabalho daqueles que ocupam a base da estrutura social. Isto se exemplifica, por exemplo, no caso dos refugiados sírios, palestinos e libaneses, que são elencados, de forma simbólica, em bons e maus. Bons são aqueles que, independentemente de suas ações, servem ao reforço dos argumentos e possibilidades de organização de vozes de autoridade, sempre brasileiras, claro, enquanto maus seriam os que destoam desta dinâmica. Na base, estão aqueles que não têm voz: os trabalhadores do Brás ou da 25 de Março, os donos de restaurante, os donos de lojas, as mulheres de véu que, a todo momento, têm sua realidade proferida por outras, distante de suas vidas (quando o véu está ausente, pior, pois a mulher árabe perde aquilo que a caracteriza enquanto tal, passando a ser desinteressante). Não raro, essas manifestações vêm em forma de uma docilidade empática que proclama se sentir na pele dos expropriados, assassinados e esfomeados eles mesmos. O preço que esta parcela intelectualizada e autoritária cobra destes subalternos com quem diz empatizar é a própria dignidade em troca da sobrevivência simbólica ou material, tornando-as exóticas como matérias típicas de “cases” de sucesso ou manipulando suas histórias a seu bel-prazer.

Já em 1923, nossos editores proclamavam, abrindo o segundo ano da Al Jaliah: “Acreditamos que as pessoas sensatas que possam ter sido afetadas não as interpretarão como ofensas, e é inimaginável que intencionalmente aqueles que nos são próximos em intelecto, espírito e pensamento”. A estes últimos, a mensagem é bem compreendida e inofensiva. Aos outros, servida a carapuça, mostra-se nosso caminho correto. Afinal, escondendo-se por trás da verdade, fica claro que têm em foco “apenas suas próprias metas e ressentimentos”, nos entregando um comprovante de seu próprio recalque.

Feitas estas considerações, afirmamos: não queremos, como alguns, deixar nosso nome na história como autoridades ou herois. Não tememos o conchavo e a fofoca. Tampouco colocamos nossos princípios à venda, como vocês, vendilhões do templo da desinteligência e do abuso: o mercado. Para sermos coerentes com tudo o que foi dito, não nos renderemos à lógica perversa da sociedade digital contemporânea, não exporemos ninguém. Agora, porém, se servir a carapuça, que seja.

Anterior
Anterior

“Tragédia” não é a palavra certa

Próximo
Próximo

Aqui é a Voz da Palestina