“Tragédia” não é a palavra certa
Gustavo Racy
Em um texto curto de 1919 intitulado “Destino e Caráter”, Walter Benjamin reflete sobre as relações entre aquilo que é visto como o caráter de uma pessoa e a possibilidade de se conhecer seu destino. Imbuído, como lhe era próprio, do misticismo judeu, sempre par a par com o materialismo histórico, como um “corcundinha desastrado”, e para além das reflexões propriamente metafísicas a que os substantivos incorrem, Benjamin faz uma distinção potente entre a história natural e a história universal.
Compartilhando de concepções análogas às que aparecerão na Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, de 1937, Benjamin operará a partir da ideia de que, no desenvolvimento das forças de produção despontando do Ocidente hegemônico, a história natural é uma história que não só diz respeito a uma narrativa sobre as coisas da natureza no tempo, mas a um tempo próprio da natureza, o tempo dos cataclismas, dos furacões e das tempestades, das estações e das placas tectônicas. Contrapondo-se a este tempo, teríamos a história universal, ou história do mundo, a narrativa do humano. O primeiro encontra sua expressão cultural na narrativa ctônica, na história Clássica dos Titãs que, derrotados pelos próprios filhos, deuses olímpicos, cedem ao julgo do potencial humano para a dominação da natureza. De forma mais radical, essa narrativa mitológica encontra sua superação no Gênesis judaico-cristão (e islâmico), em que o humano se torna um império, inaugurando o tempo histórico da humanidade. A partir daí, a história natural já não é mais todo-poderosa; agora a humanidade, constituída escatologicamente por um único Deus, pode decidir seu próprio destino, isto é, tem em mãos as rédeas de seu próprio devir. Definitiva nesta distinção é a ideia de que não há escapatória à história natural. Nela, o que há de ser, será. Daí os gregos tiraram sua concepção de tragédia: Édipo encontra seu destino exatamente ao desafiar as previsões do oráculo, estampando sua vida com o fatalismo próprio à totalidade helênica que cria, a partir de sua mitologia, que o destino dos homens estava selado, inescapável.
Diferentemente de uma concepção comum na abordagem à história da filosofia, o que Benjamin e os frankfurtianos fazem, ao estruturar sua filosofia da história a partir da distinção Politeísmo grego - monoteísmo judaico, é romper com a concepção de que a filosofia nasce a partir da diferenciação entre mito e logos; agora, o que se tem é o nascimento da cultura filosófica a partir da distinção mito - história. É esta a distinção que fundamentará a abordagem de Benjamin à história, já que o filósofo terá em vista que, para uma concepção materialista, é necessário que nos despojemos da ideia de destino, dado que esta pertence ao reino da história natural, não ao de nossa história humana, ou seja, mundial. No limite, e encurtando muito sobre o que poderíamos tratar aqui, Benjamin advoga a ideia de que não há, na história humana, algo que seja inevitável. Crer que os acontecimentos do mundo possam ser explicados ou compreendidos como fenômenos advindos de uma “natureza” humana ou de uma causalidade mecânica é não só recair no mito - que se mostra, como discutiram Adorno e Horkheimer, autoritário ele mesmo - mas ceder à insensibilidade do mecanicismo positivista do Século XIX, álibi do processo de estranhamento promovido pelo capital e, assim, motor do mecanismo de reificação da cultura - cujo processo Lukács denunciaria em História e Consciência de Classes.
Muito se vê nomear o genocídio palestino - bem como tantas violências ao longo da história - como uma “tragédia”. Tragédia não é a palavra certa. Não há nada de inescapável no processo deflagrado pelo colonialismo e pela exploração capitalista. Embora isto possa parecer apenas uma questão de linguagem, é importante voltarmos nossa atenção para a forma em que nomeamos a realidade. Compreender ou teorizar a respeito do genocídio palestino a partir da consideração de que ele seja uma tragédia seria, seguindo a trilha aberta por Benjamin, condenar a Palestina (e a Síria, o Congo, o Iêmen, a realidade dos indígenas do mundo) a ser tratada como destinada à morte. Não só, subjaz à percepção da realidade como tragédia uma força legal, uma força de direito que reclama para si o destino, mostrando que a realidade escapa à própria humanidade. A própria linguagem, nesta lógica, se exibe como algo que, desconhecido em sua inteireza, nos escapa.
Não é por acaso que as reflexões de Benjamin presentes em “Destino e Caráter” encontram reverberações em textos posteriores, como “Para Uma Crítica da Violência”, de 1921, em que o filósofo aborda aberta e demoradamente o direito e a justiça, a diferença entre o legal e o ético, e a distinção entre a violência como poder e o poder como violência. Todas estas questões são um ataque direto à forma mitológica e mitômana que o nazismo alemão conseguira tornar hegemônico a partir dos anos 1920 (1). O refinamento de uma linguagem própria que os nazistas conseguiram cunhar, e que se tornou uma questão central na Alemanha - presente, por exemplo, num longo excurso do Austerlitz, de Sebald - é a expressão concreta do perigo que a não distinção entre destino e história pode causar: a solidificação de uma estrutura social baseada no mito, numa violência sem escapatória cujo resultado é a sentença jurídica da narrativa. Assim, condenamos populações inteiras ao destino inescapável do extermínio, da “violência sectária”, da barbárie fundacional daqueles cuja fisionomia não reconhecem na sua. Com isso, se tornam espectadores, não testemunhas, que, como dissemos em outro lugar, se perdem na satisfação da representação.
Se o mito todo-poderoso permanece vivo sob a estruturas do capitalismo contemporâneo, das democracias liberais - que não cansam de demonstrar que não têm problemas em se aliar ao fascismo - e mesmo de uma fração comunista reacionária, ele não o faz somente porque se impõe como direito e justiça, cindindo a distinção entre ambos, mas porque nós, também, continuamos a operar a partir de uma linguagem específica cuja lógica é a da reprodução silenciosa das estruturas e categorias de pensamento. Se o silêncio fala, as palavras que escolhemos falam também pelo que não dizem. Socialmente, vale para a designação “tragédia” o mesmo que a ideia do “merecimento”; “as pessoas não merecem isso”, é a consideração vulgar de que a felicidade ou a liberdade são frutos consequenciais do trabalho ou do valor pessoal, como se fosse necessário ser “digno” de felicidade, de liberdade, ou o que quer que seja. Essa é a lógica da linguagem do capital, que identifica, exclui, separa, inclusive separando a percepção (do mundo, de tudo), do conhecimento, interiorizando a imagem da realidade e fazendo com que tudo recaia na psicologia. Na verdade, essa retórica reificada é exterminadora da magia, que conclama, a cada coisa, um nome secreto.
Esta percepção distorcida que reproduzimos na linguagem está presente, também, nas imagens, e se reforça em nosso discurso sobre as imagens circundantes. A reação emocional gerada pelas imagens não raro subdivide o gênero, quando a imagem, por si, deveria expor a espécie. Por isso, a interpretação das imagens que geralmente pretendem ancorar o perceptível a algum grau de realismo, geralmente incorre na empatia supérflua e em algum tipo de sensibilização num mundo que fez da insensibilidade virtude, senão à frente das telas, no mundo privado da psicologia individual, na cisão mal resolvida entre o “público” e o “privado”, e no cotidiano concreto. Perante a imagem de uma criança sem braços, ou de outra morta numa praia da Turquia, diante de palestinos esfomeados ou alauítas e druzos metralhados ou jogados de um terraço, a exigência do sujeito que vemos é contornada com o compartilhamento e uma espécie de compaixão privada; estetiza-se uma experiência que nada tem de estético, pois é, antes de tudo, religiosa e ética.
Entre a palavra e a imagem, escolher o léxico “tragédia” para se tratar a Palestina, e o genocídio palestino, ou qualquer outro, é condenar à morte toda a humanidade, porque chancela a silenciosa morte da magia capaz de convocar à vida, e insere a matança indiscriminada à esfera do inevitável, como se não fosse produto de mãos e mentes humanas, de armas humanas, de tecnologias humanas e de uma história humana, à qual todos pertencemos. E não se enganem: o princípio de sua mentalidade, que parte da, e retorna para a tragédia, cabe como uma luva para o eterno retorno da estetização da política.
Notas
(1) Dizemos “a partir”, pois esta forma persiste até hoje.
Referências
AGAMBEN, G. 2007. Profanações. São Paulo. Boitempo Editorial
BENJAMIN, W. 2011. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). São Paulo: Editora 34; Duas Cidades.
Gustavo Racy é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná. Membro do Núcleo de Análise de Conjuntura Internacional (NACI), da PUC-SP, atualmente realiza estágio pós-doutoral na UNIFESP. É organizador e tradutor de “Walter Benjamin está Morto”, publicado pela sobinfluencia edições, editora da qual foi um dos fundadores. Na Al Jaliah, assinou os textos “Sinais Desonrosos” e “A Palestina é o Mundo”, publicado no número 0 da revista.