A Síria e os Perigos de Brincar com Fogo
Gilbert Achcar
Traduzido por Al Jaliah
Traduzido da versão em inglês do original publicado em Al-Quds Al-Arabi, em 15 de julho de 2025.
Seja qual for a origem das recentes lutas sangrentas na província de Suweida — sejam elas fruto do caos reinante na Síria pós-Assad, uma manobra de Israel para ampliar sua intervenção dissimulada na região ou uma estratégia do HTS (Hay'at Tahrir al-Sham) para expandir seu domínio no sul do país — o que parece inegável é que o primeiro desses fatores criou o terreno fértil para a explosão atual.
O estopim foi aceso por grupos beduínos que atacaram um morador da província, encorajados pela postura do novo regime de Damasco. Enquanto pressiona as minorias para entregar suas armas, o governo facilita o armamento de diversos grupos sunitas — estratégia semelhante à do regime anterior com os notórios Shabiha, embora agora com outra afiliação sectária.
É alarmante e perigoso que o novo governo de Damasco tenha ignorado os repetidos apelos para garantir a segurança na estrada entre Damasco e Suweida. A ausência de controle e intervenção efetiva nessa via estratégica abriu caminho para o conflito atual. Ele poderia ter sido evitado, caso o governo tivesse demonstrado o mesmo empenho em conter os grupos beduínos aliados quanto mostra agora ao usar os confrontos como pretexto para entrar em Suweida — uma ação que mais se assemelha a uma ocupação do que a uma libertação.
Como relatou o correspondente do Al-Quds Al-Arabi em 13 de julho, um acordo firmado no final de abril entre o governo sírio e líderes locais de Suweida previa o retorno da atuação policial na província e o compromisso do governo com a proteção da estrada Damasco-Suweida — via vital para centenas de milhares de moradores. No entanto, os ataques contínuos nessa rota e a incapacidade de garantir o tráfego civil só agravaram as tensões sociais na região.
(Heba Mohammed, “Syrian Suwayda: Deaths in Clashes Between Druze and Bedouins, and Kidnappings”, Al-Quds Al-Arabi, 13 de julho de 2025)
Já no dia 11 de julho, antes mesmo da explosão dos confrontos, o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (SOHR) havia alertado sobre a escalada do caos no país:
“As perdas humanas continuam ocorrendo diariamente em toda a Síria, sob diversas circunstâncias, como resultado da violência crescente, operações militares, assassinatos seletivos, execuções, explosivos não detonados e outras causas que ceifam vidas — principalmente de civis, mas também de membros das diversas forças militares que controlam o território sírio.”
(SOHR, “Escalation of Violence in Various Syrian Regions Leaves 35 Dead in 72 Hours”, 11 de julho de 2025)
Esse mesmo padrão ameaça se repetir em outras regiões fora do controle do novo governo de Damasco — especialmente nas áreas de maioria curda. As forças curdas, notoriamente mais organizadas e poderosas que os combatentes drusos ou mesmo o HTS em sua nova versão “oficial”, vêm sendo alvo de pressões similares.
No dia 14 de julho, o SOHR divulgou outro relatório denunciando o bloqueio prolongado do fornecimento de petróleo a bairros predominantemente curdos de Alepo, como Sheikh Maqsoud e Ashrafieh, por mais de 15 dias. Segundo os moradores, as autoridades adotaram práticas herdadas do regime Assad, restringindo combustível, eletricidade e serviços básicos para pressionar a Administração Autônoma do norte e leste da Síria a ceder politicamente ou financeiramente. (SOHR, “The Former Regime’s Method...”, 14 de julho de 2025)
Diante desse cenário caótico, não surpreende que Israel aproveite a crise para se reposicionar como “protetor” da comunidade drusa. Trata-se do mesmo Estado que, em 1981, anexou as Colinas de Golã contra a vontade dos drusos locais — que rejeitaram em bloco a cidadania israelense e realizaram uma histórica greve geral de cinco meses em 1982, duramente reprimida pelo cerco militar. Agora, Israel usa os confrontos em Suweida como pretexto para destruir equipamentos herdados pelo HTS do antigo regime e, provavelmente, para fortalecer setores drusos dispostos a aceitar a criação de um emirado sob proteção israelense.
Diante dos acontecimentos, vale lembrar o que escrevi há pouco mais de dois meses:
“A culpa recai principalmente sobre aqueles que atribuíram a queda do regime Assad exclusivamente a si mesmos... O HTS deveria reconhecer com humildade os limites de sua força — muito inferior à das forças curdas no nordeste — e incapaz de estender seu controle a todas as regiões árabes anteriormente controladas com apoio russo e iraniano.
Em vez disso, Ahmad al-Sharaa euforicamente se comportou como se já tivesse substituído Bashar al-Assad no palácio presidencial — a ponto de, fisicamente, começar a se parecer com uma versão barbada do antigo ditador. Agiu como se pudesse dominar toda a Síria...”
Ao descrever o processo democrático inclusivo que o HTS deveria ter promovido — conforme reivindicava a maior parte da antiga oposição ao regime Assad — concluí:
“Essas são apenas algumas das condições necessárias para limpar as águas da Síria e restaurar a coesão entre os diversos componentes de sua população.
O que o regime do HTS fez até agora, no entanto, foi lançar o país perigosamente num pântano, abrindo espaço para todos os tipos de oportunistas regionais que preferem pescar em águas turvas. À frente deles, o Estado sionista.” (“Syria: Fishing in Troubled Waters”, Al-Quds Al-Arabi, 6 de maio de 2025)
Gilbert Achcar nasceu no Senegal em 1951. É formado em ciências sociais pela Lebanese University de Beirute e pela École Supérieur des Lettres de Beyrouth (Université Lyon-II). Desde 2007 vive em Londres, onde é Professor Emérito na SOAS, Universidade de Londres. Suas muitas publicações incluem os livros The Clash of Barbarisms; Perilous Power: The Middle East and U.S. Foreign Policy, com Noam Chomsky; The Arabs and the Holocaust; The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising; e The New Cold War: The United States, Russia and China, from Kosovo to Ukraine. Seu novo livro, The Gaza Catastrophe: The Genocide in World-Historical Perspective, será lançado no verão do hemisfério norte em 2025.