Síria: Poderes de Fato e a Ilusão da Salvação. Vozes e Contribuições Pessoais

Texto por Kharif


Pode-se descrever a situação atual na Síria como um colapso completo do que poderíamos chamar de fronteiras éticas que antes eram vigentes, ou, de outra forma, como um colapso social em todos os níveis, impulsionado com força pelo poder vigente em Damasco, indiferente às consequências desse colapso. Essa indiferença é uma das principais razões — se não a razão principal — do que vemos e vivenciamos em termos de violência.

O poder de fato não se vê como beneficiário caso se mova em direção a reformas e à justiça de transição, pois isso implicaria perder parte de sua identidade essencial. Não é flexível de forma alguma, ao contrário da imagem que tenta projetar; chamá-lo de flexível seria quase uma piada. A descrição mais precisa é a de que a violência é sua ferramenta central: ele a produz, a permite e ainda recompensa seus autores — o que ajuda a explicar a dimensão dos crimes que testemunhamos e que permanecem impunes.

O que impressiona é a recepção positiva ao discurso vazio de lógica apresentado pelo poder, baseado em uma repetição superficial de ideias. Talvez não seja tão surpreendente, pois a lógica prejudica qualquer representação do governante de Damasco hoje. Essa ausência de lógica fica evidente ao observar um dos porta-vozes do regime na mídia: ao ser questionado sobre sua declaração, ele simplesmente a repete; na prática, não se questionam nem justificam suas ações, mas veem em si mesmos o direito refletido em seus próprios espelhos.

Portanto, tudo o que é dito nesse contexto, independentemente da forma, serve para justificar tipos de violência e violações. Mesmo que o porta-voz seja um pouco mais astuto, seu máximo será a cantilena da “crítica construtiva”. Porém, não há espaço para criticar o crime; supondo que haja alguma lógica ética universal, limitar-se a criticar apenas as milícias de morte espalhadas pelo país seria ingênuo, pois o correto diante dos perpetradores de violência é rejeitá-los, resistir a eles, condená-los e levá-los à justiça.

O que ocorreu no litoral da Síria e que continua ocorrendo hoje em Al Suweida e em outras regiões, em termos de violações, representa claramente a metodologia e a estrutura do poder — sem qualquer nebulosidade ou manobra: de acordo com os tratados de direitos humanos e a ausência de um quadro legal sírio, trata-se de crimes de guerra.

As gangues/milícias criminosas que se autodenominam governo utilizam a mobilização tribal e a convocação geral para matar com base em identidade e saquear tudo que podem, algo que contradiz completamente a lógica de qualquer conceito de “Estado”.

Hoje, ouvimos um discurso único repetido em todas as plataformas disponíveis, que difama qualquer dissidente, demoniza-o e promove uma cultura de rejeição e desprezo pelo outro — preparando o terreno para a aceitação da violência e consolidando a base popular das massacres.

Para alguns, pode ser chocante receber e até celebrar essa violência, mas isso é esperado de um poder desse tipo, que desempenha um papel central na produção da imagem das vítimas como “não humanas”, que “merecem” a violência, responsabilizando-as por uma instabilidade futura que o próprio poder “prevê” e cria. Simultaneamente, nos afoga com informações enganosas, consumindo tempo para verificar sua veracidade e retardando que grupos e indivíduos cheguem à pergunta mais importante: quem é realmente responsável pelo que acontece? A resposta, claro, não é esperada, mas buscamos caminhos para a responsabilização legal.

Avaliar os eventos em geral e, em seguida, escolher julgar “indivíduos” e atribuir a eles o peso da máquina de violência em funcionamento é uma violência renovada que não trata o crime, como tentar extirpar um tumor maligno de um corpo tomado pela doença. Isso é exatamente o que representam as encenações de investigações sobre massacres e violações no litoral. Em resumo, não é possível separar as violações “individuais” — como alguns tentam chamá-las — da estrutura do poder.

Hoje, Al-Joulani obtém parte de sua força a partir da falsa sensação de sobrevivência que o povo acreditou ter e continua a sustentar após o declínio do regime Assad. O que vivemos hoje é o governo de novos indivíduos que enfraqueceram as instituições por falta de experiência e destruíram o que restava, por meio da expansão de seus grupos armados.

Talvez, como sírios, devamos tentar descrever a realidade que vivemos tal como ela é, para que possamos, a partir de sua clareza, buscar soluções que talvez salvem o que resta e o que ainda pode ser preservado.

Próximo
Próximo

Homs: uma Memória Povoada por Fantasmas