Homs: uma Memória Povoada por Fantasmas
Sobre o documentário ذاكرتي مليئة بالأشباح [Minha Memória Está Cheia de Fantasmas] (2024), de Anas Zawahri.
Al Monther Al Damani
Tradução: Yara Osman
A discussão sobre a cultura na Síria após a queda do regime Assad vai muito além da simples disputa pelo poder. O que se destaca nesta discussão é uma tentativa sistemática de silenciar qualquer narrativa política, cultural ou artística nascida em áreas sob o domínio do regime como se não passasse de ecos de seu discurso oficial. No entanto, essa visão não é capaz de abarcar a complexidade da experiência síria.
Das cidades destruídas emergiram narrativas muito mais profundas que a simples lógica de vitória ou derrota imposta por Assad e reproduzida pelo novo poder. Essas narrativas não se limitaram a registrar a devastação: foram tentativas de compreender a catástrofe, de mergulhar em suas dimensões humanas. Afinal, a destruição atingiu a todos, sem exceção, deixando marcas indeléveis na cultura e na memória coletiva, marcas impossíveis de serem reduzidas a um único discurso político.
Tal realidade abre espaço para questionarmos seriamente o significado da justiça e a possibilidade de alcançá-la, assim como a própria história da revolução e da guerra em uma cidade como Homs, que já foi chamada de “capital da revolução”, mas que até hoje não viveu a sua suposta “vitória”: O que realmente aconteceu ali? Qual é a sua narrativa entre o passado e o presente?
Na tentativa de alcançar essa narrativa, acompanhei as histórias de quem permaneceu independente dela: pessoas que viveram em seus bairros, testemunharam suas transformações, foram impactadas por ela e também a impactaram, e continuam a carregar a cidade dentro de si. É neste espaço de memória que o documentário Minha Memória Está Cheia de Fantasmas, do cineasta sírio-palestino Anas Zawahri, nos conduz. O filme nos apresenta a imagem de Homs antes da queda de Assad, quando um silêncio de derrota cobria a cidade, tingindo o cotidiano de tons cinzentos e preparando o terreno para uma queda repentina — surpreendente à primeira vista, mas absolutamente lógica.
O longa conquistou o prêmio de Melhor Documentário no último Festival de El Gouna. A obra resgata narrativas que talvez tenham sido marginalizadas após o fim da guerra direta na maioria das cidades sírias; narrativas que, em anos passados, estiveram tão presentes e intensas. Estes são anos que agora, porém, continuam vivos no presente.
Carregadas de perguntas, estas narrativas questionam a natureza das transformações ocorridas, a forma de nossas memórias hoje e a nossa relação com as cidades que habitamos em um presente silencioso e nebuloso, povoado pelos fantasmas do passado e marcado pela ausência quase total de qualquer elemento do futuro. Como se desenha nosso cotidiano? Onde está a história humana que consegue expressar com mais veracidade a história política?
Zawahri não tenta dar respostas prontas. Seu filme caminha lado a lado com essas perguntas, documentando-as e devolvendo-nos uma narrativa contemporânea feita de memórias vivas e assombrações persistentes.
O fantasma da cidade
O filme retrata a cidade de Homs em 2023, apresentando sua narrativa contemporânea e parte da história da cidade por meio das experiências de um grupo de seus habitantes. Vemos seu presente, seus medos, seu cotidiano e os fantasmas que habitam suas memórias. Percebemos a relação complexa que mantêm com a cidade, as contradições em suas descrições: ora a consideram injusta, ora oprimida, marginalizada e destruída, exaustiva — se parecendo, assim, com seus próprios habitantes. Talvez nestes retratos a cidade seja apenas um espelho de seu povo.
É esse reflexo que leva os moradores a humanizar a cidade em suas conversas e expressões sobre injustiça. Essa humanização, por sua vez, é a própria expressão da relação complexa com o lugar, com a história e com a narrativa. Mas a pergunta persiste: a quem atribuímos a culpa? Como devemos nos sentir em relação a esse lugar? Amá-lo e lamentar sua dor? Ou enraivecerme-nos e rebelar-nos contra ele? A cidade sofreu o que nós sofremos? Ou foi ela que nos impôs tudo isso?
As respostas a essas perguntas quase sempre surgem contraditórias, revelando a complexidade da situação política — que, a princípio, poderia nos oferecer uma resposta sobre a responsabilidade do regime de Assad pelo que aconteceu na cidade e no país como um todo. Mas a resposta é mais complicada do que isso quando olhamos pelo prisma humano. Principalmente, a complexidade se manifesta no aspecto social, na configuração da cidade e nas manifestações do medo em relação às forças em conflito, depois do início da revolta contra o regime, que rapidamente se transformou em uma guerra brutal e absurda, na qual ninguém sabia quem era inimigo, quem nos matava ou quem nos expulsava de nossos lugares.
Todas essas contradições nos conduzem, no filme, à reflexão sobre a solidão, que se tornou inevitável: um mecanismo de fuga, e uma forma de autoflagelação. Não é punição, nem salvação; é uma condição suspensa, inexorável, vivida pelos habitantes de Homs, e uma suspensão que é, de certo modo, uma imagem da própria cidade.
Entre as vozes do longa, há a de uma jovem que fala do sufocamento da vida social: a dor como elemento essencial da existência e o medo se transformando em crises de pânico, explosões emocionais tardias que só vieram à tona na falsa calma do pós-destruição. Outro depoimento, de um rapaz cego, descreve o retorno a Homs após anos de exílio: “Quando voltamos, ninguém falava. Todos choravam.” O que mais o aterrorizava não eram os bombardeios, mas o som das demolições que se seguiam. Ele agradece, paradoxalmente, por não ter visto a cidade com os próprios olhos.
Histórias de perda
Em um outro movimento, o filme nos leva das perguntas dos habitantes sobre a cidade e suas manifestações na vida cotidiana após o retorno, bem como sobre o fantasma que ela representa em suas memórias, às histórias de perda; para os próprios fantasmas na memória daqueles que sobreviveram.
Um jovem conta a dor de ter perdido o irmão, sequestrado inicialmente por um grupo de amigos integrados ao Exército Livre, e detido, depois de sua liberação, por uma das divisões de segurança do regime Assad. A notícia de sua morte chegou apenas dois anos depois: vítima de “um ataque cardíaco” dentro da prisão. O jovem compartilha também o medo de não conseguir continuar, especialmente após a morte dos pais pouco depois da partida do irmão, permanecendo sozinho em casa, sem saber como seguir adiante — e, ainda assim, persistindo na vida.
Outra jovem fala sobre o pai, morto em meio a um confronto em Homs. Mais tarde, os assassinos foram presos, e a família foi confrontada com uma escolha dolorosa: perdoá-los e deixar a justiça seguir seu curso, ou processá-los e receber uma compensação financeira. Para a garota, então com 19 anos, surgia uma questão impossível: como alcançar justiça? Como honrar a memória do pai diante de opções tão limitadas?
Uma terceira jovem relata o assassinato brutal da mãe por adolescentes de 14 e 16 anos, motivados pelo roubo. Ela se vê diante do absurdo da violência que a deixou sem família ou lar, sem direito sequer à raiva ou à justiça.
Em outro momento, um ex-soldado narra como foi retirado de um posto de controle porque era requisitado para o serviço militar, mudando sua vida da noite para o dia. Tornou-se soldado na linha de frente, após anos de trabalho no Líbano. Ele conta a história de um amigo ferido e de como implorou para não deixá-lo à própria sorte em meio aos bombardeios e tiros, revivendo momentos de perda extrema, que se somaram a fracassos afetivos, materiais e humanos.
Todas essas histórias compartilham o mesmo núcleo: o absurdo da guerra, que eliminou o inimigo direto — aquele a quem os afetados poderiam culpar — e apagou qualquer traço de justiça ou caminho para alcançá-la. A guerra tornou-se, assim, o adversário principal, e a perda que ela impôs não tem causa nem propósito; é uma perda cruel e fútil, que deixou marcas profundas de crueldade, medo e vazio no íntimo das pessoas. Essas cicatrizes moldam o cotidiano, o comportamento e a percepção da vida, envoltos em uma raiva e sufocamento enormes, sentimentos que só podem ser dirigidos ao próprio lugar: uma cidade que sentimos estar perdendo da mesma forma que perdemos nossos entes queridos — de maneira absurda e injusta.
As histórias terminam com vozes jovens. Um rapaz fala sobre a inevitabilidade da esperança como uma verdade histórica, mas se questiona sobre sua forma e particularidade em uma cidade como Homs — em que talvez a única esperança seja aquela de partir; de viajar. Em seguida, uma jovem complementa, falando do cotidiano simples, das pequenas coisas que agora representam sua sobrevivência reduzida a que o dia termine sem notícias ruins. Sua sobrevivência se manifesta na valorização da simplicidade cotidiana, que na guerra se tornou algo mais que valioso. Ela também expressa seu desejo de viajar e o medo de deixar a cidade antes de ter contribuído de alguma forma para ela.
Voltemos às contradições do cotidiano e à relação complexa com a cidade: contradições vividas de forma intensa, que geram uma mistura de quietude, melancolia e o desejo simultâneo de partir e permanecer. Talvez sejam essas contradições que humanizem a cidade aos olhos de seus habitantes, uma humanização que reflete o estado paradoxal em que vivem hoje; o estado de uma cidade que foi castigada das formas mais cruéis por ter um dia aspirado à vida e à esperança.
O conceito do “cotidiano comum” “ordinário”
A linguagem de direção do filme se destaca por seu foco estético nos conceitos centrais, nas questões levantadas pelos habitantes e nas contradições emocionais que vivenciam, exploradas em múltiplos níveis visuais e sonoros.
No primeiro nível, a câmera fixa, dirigida por Hamza Blouq, registra momentos em movimento dentro de detalhes da vida urbana, ou pessoas que sorriem para a câmera em seus espaços simples e aleatórios ao longo de todo o filme. Ela acompanha também aqueles que narram suas memórias enquanto caminham pelas ruas da cidade ou permanecem em suas casas, praticando uma solidão absoluta. Nesse nível, percebe-se a relação entre o imóvel e o móvel, que expressa de forma precisa a cidade fixa e as tentativas de movimento de seus habitantes em busca de pequenas e simples experiências de vida.
No segundo nível, surge o contraste entre o som da cidade (captado por Mihyar Shama), cheio de pássaros, ruídos de rua e mercados, e a imagem da cidade destruída, que reflete o estado psicológico dos habitantes. O som representa a vida que eles são obrigados a seguir dentro de um contexto de destruição presente em seus corpos e espaços.
No terceiro nível, o filme se destaca pelo seu sistema narrativo sonoro, com uma trilha que confere realismo e credibilidade às histórias, sem adições artificiais ou emoções impostas. Mas a própria narrativa dos habitantes é fascinante: falam com uma simplicidade quase cotidiana, como se fossem vozes comuns da cidade, abordando morte, perda, tristeza, confusão e sofrimento. Essa simplicidade na abordagem cria uma relação de recepção muito genuína, levando o espectador a refletir e sentir essas histórias a partir do aqui e agora, de um presente que torna viva (dinâmica) a memória e ao mesmo tempo fixa nossa existência.
É neste nível que as contradições alcançam seu ápice estético, refletindo o espírito verdadeiro da cidade. Escutamos histórias em um espaço visual devastado; ouvimos relatos, mas não vemos os personagens contá-los; vemos apenas suas rotinas, sua solidão, e como, de forma consciente ou inconsciente, eles expressam a cidade, seu presente e seu passado.
O filme termina com uma câmera em movimento percorrendo as ruas da cidade ao amanhecer. Nada se move dentro do enquadramento; a câmera só se movimenta finalmente junto às vozes jovens, que falam sobre a inevitabilidade da esperança. É nesse momento que a narrativa visual e sonora se completa, dentro de uma linguagem de direção singular, fiel às histórias e expressa por meio de uma visão estética do som, da imagem e da montagem de Ali Qazwini.
Esta linguagem constrói o conceito do “simples ordinário” mencionado pela jovem no final do filme — a simplicidade que deve ser valorizada como forma de sobrevivência e de continuar vivendo, preservando os elementos mais básicos da vida. É uma abordagem de direção que revela uma estética própria na apresentação da feiúra e da crueldade, uma estética que nos convida a refletir sobre nossa memória e nosso presente, a questionar o reencontro com nós mesmos e a persistência na vida.
Mostra também a realidade da inevitabilidade da esperança em um contexto em que os fantasmas se tornaram parte inseparável da cidade, e em que buscamos compreender nossa relação com ela, na tentativa de sobreviver e seguir adiante após nossa grande derrota, forçados a permanecer no pós-derrota. Após a queda de Assad, no entanto, o filme pode ser percebido de maneira diferente, relançando as questões centrais: sobre a justiça ao livrar-se do tirano e sobre a verdadeira justiça para seu povo, que perdeu a esperança de alcançá-la, e cuja memória se tornou uma maldição que persegue sua existência.
Que tipo de comportamento a cidade, seus habitantes e aqueles que a administram devem adotar após essa proclamada vitória? Libertar-se do tirano é suficiente para avançar em direção à justiça e à liberdade com que sonhamos, ou a maldição da guerra iniciada pelo tirano tornou-se maior do que ele próprio, impossível de superar apenas com sua queda?
Essa pergunta é um imperativo derivado da realidade da cidade, que nos obriga a diferenciar — ainda que de forma preliminar — entre a queda do regime e a suposta vitória da revolução, pois a vitória da revolução síria, em sua singularidade, é sobretudo a vitória sobre a maldição da guerra, e não apenas sobre o regime de Assad.
Al Monther Al Damani é dramaturgo e crítico de arte. Formou-se no Instituto Superior de Artes Dramáticas, Departamento de Estudos Teatrais, em Damasco, e é mestrando em Estudos Teatrais e Cinematográficos na Universidade Jesuíta de Beirute. Sua principal área de atuação é a relação entre morte e liberdade e suas manifestações no comportamento humano, especialmente após a eclosão da Guerra Síria em 2011. Por meio de sua pesquisa como dramaturgo e diretor, produziu diversas peças teatrais que discutem essa dualidade em Damasco, Beirute e Amã. Dedica-se ao jornalismo e à crítica de arte, tendo publicado artigos em diversos jornais, revistas e sites. Pela Al Jaliah, publicou صرير الأجساد في حلبة السلطة: عن الحرب، الثورة، والمقاومة الممكنة, (O ranger dos corpos na arena do poder: sobre guerra, revolução e possível resistência), crítica da peça “Grito”, dirigida por Sara Al-Mun’em e encenada em Beirute.