“Sumud” como Aparato de Romantização e Desumanização
Badar Salem
Tradução: Al Jaliah
Texto originalmente publicado em RommanMag em 19 de julho de 2024.
“A resiliência de Gaza mudou o mundo”.
“O que está acontecendo em Gaza é um épico de resiliência e heroísmo”.
“A lenda da resiliência do povo de Gaza… é o milagre global do século”.
Estas declarações, amplamente repercutidas nos meios de comunicação árabes, capturam a narrativa dominante que enquadra a guerra em Gaza. Elas elevam a resistência da Faixa de Gaza diante da violência de Israel – que matou mais de 43.000 palestinianos (dados de 11/24) – à categoria de uma saga de desafio heróico.
À medida que a guerra persiste e o número de mortos aumenta, a resiliência é celebrada como uma pedra angular da resistência. No cerne desta narrativa reside um pressuposto perigoso: o de que qualquer demonstração de vulnerabilidade face a uma destruição tão implacável pode ser mal interpretada como rendição. Mas esta visão simplifica em excesso a experiência humana. Impõe um fardo emocional e psicológico àqueles que já sofrem um trauma extraordinário.
Romantizar a resiliência como heroísmo corre o risco de apagar a humanidade dos sobreviventes. Estabelece expectativas irrealistas, transformando as pessoas em símbolos de força enquanto negligencia a sua necessidade de empatia, cuidado e reconhecimento da sua dor.
Este artigo explora a idealização da resiliência em Gaza, interrogando o seu valor percebido e expondo os seus custos. Desafia a representação dos palestinianos como "vítimas resilientes", uma narrativa que frequentemente oculta mais do que revela.
As Raízes Complicadas da “Resiliência”
Em inglês, a palavra “resiliência” se originou no século XVII a partir do latim resilire, que significa “voltar atrás”. Inicialmente usada para descrever certas madeiras que se curvam sem se quebrar, a palavra ganhou tração na ecologia e na psicologia. Na ciência ambiental, ela se refere à capacidade de um ecossistema de sobreviver a distúrbios; na psicologia, designa a recuperação face à adversidade.
Ao longo do tempo, “resiliência” se tornou uma palavra da moda, especialmente entre os formuladores de política. De programas corporativos de bem-estar a campanhas de auxílio humanitário, agora a palavra representa robustez e adaptabilidade a tudo, de crises pessoas a zonas de guerra e pandemias. Durante a pandemia de COVID-19, apelos para “mantermo-nos resilientes”, foram ubíquos: reconfortantes a alguns, enervantes a outros.
Mas há o risco do abuso. Em “The Downside to Fostering Resilience”, a doutora Kathleen M. Pike, da Universidade de Coulmbia, alerta que a idealização do termo pode levar à complacência. A resiliência - ela argumenta - pode se tornar uma ferramente para justificar, ao invés de encerrar, o sofrimento. Quando a resiliência é celebrada como um objetivo, ela pode permitir que falhas sistêmicas perdurem.
Sumud vs. Resiliência: um Enquadramento Palestino
Na Palestina, sumud (robustez, perserverança) carrega um peso político e cultural maior do que as noções ocidentais de resiliência. Enquanto esta implica flexibilidade ou adaptação, sumud expressa um compromisso inabalável com a resistência. Não se trata de simplesmente sobreviver à opresão, mas de a ela se opor. O termo carrega identidade, cultura e conexão à terra.
Enquanto a resiliência reflete a capacidade de um indivíduo de se adaptar, sumud é inerentemente coletiva e oposicional. Como escreveu Caitlin Ryan em seu estudo “Everyday Resilience as Resistance: Palestinian Women Practicing Sumud”, de 2015, sumud é “viver apesar da incerteza”, e não somente suportá-la.
Quando, porém, sumud se torna um ideal imposto, pode se tornar opressivo. A expectativa de que palestinos devam permanecer perpetuamente perseverantes achapa sua humanidade, reduz seus sofrimento a um ato simbólico de resistência, não raro às custas de seu bem-estar psicológico. Este padrão ignora o alto custo emocional de uma guerra sem fim.
A mesma crítica emergiu em outros contextos. Após o furacão Katrina, Tracey Washington, do Instituto de Justiça da Louisiana afirmou: “Não quero que sejamos resilientes; quero, antes de tudo, que consertemos as coisas que criaram a necessidade da resiliência”. Em tais contextos, resiliência não é liberação, é adaptação forçada.
O Custo Emocional da Imposição do Sumud
“Não estou sendo paciente ou perseverante, estou com nojo do calor e dos mosquitos, e quero que esta guerra acabe”."
“Gaza não é perseverante, Gaza está destruída, e forçada a perseverar”.
“Não sou perseverante. Simplesmente amo Gaza”.
Estes sentimentos, compartilhados por gazauis nas redes sociais reagem contra a glorificação do sumud. Para muitos, a perseverança não é uma fonte de orgulho, é um fardo. O mito do "espírito lendário de Gaza" frequentemente abafa a dor crua e a exaustão com que as pessoas vivem diariamente.
A acadêmica Lamia Moghnieh nota de que modo a resiliência pode desumanizar os palestinos, transformando-os em arquétipos invencíveis. Em seu artigo intitulado “On trauma/resilience and psychological suffering: how can Palestinians be rehumanized?”, a autora critíca a forma em que sumud se tornou um construto funcionando de cima para baixo, promovido por aqueles distantes do trauma diário da guerra. Um exemplo flagrante é o comentário de um editor libanês que afirmou que as mulheres palestina poderiam “repovoar a população morta em dois meses”. Esta retórica reduz a sobrevivência à capacidade reprodutiva, apagando o luto individual.
Aqueles que não podem - ou escolhem - não performar sumud geralmente enfrentam condenação; são rotulados como “fracos” ou “antipatrióticos”, como se resiliência fosse um dever moral, e não uma resposta humana. Neste enquadramento, a incapacidade de perseverar se torna uma falha pessoal, e não um sintoma de sistemas injustos.
A glorificação do sumud também ignora a inequalidade. Nem todos têm acessos equitativos a recursos (comida, abrigo), que tornam a resiliência possível. Quando assumimos que todos os palestinos podem, ininterruptamente, perseverar, obscurecemos a distribuição desigual de sofrimento e o abandono estrutural.
O Fardo da Perseverança Infinita
Quando a resiliência se torna infinita, sistemas de poder são absolvidos. Todos elogiam os palestinos por sobreviver, mas pouco fazem para desafiar as estruturas que os forçam a tal. Ao invés de demandar justiça, a narrativa celebra sua “adaptabilidade”. Essa expectativa coloca o fardo da dignidade sobre os oprimidos enquanto absolve o opressor.
Em seu estudo de 2023, “Beyond Expectations of Resilience: Towards a Language of Care”, Malaka Shwaikh critíca esta dinâmica. Espera-se - escreve ela - que uma pessoa resiliente “luta constantemente para se adaptar ao mundo, e não que possa imaginar mudar o mundo, a sua estrutura e as condições da sua possibilidade”.
Sumud é poderoso; ajudou palestinos a resistirem ao apagamento. Para verdadieramente se honrar a vida palestina, porém, devemos superar a fetichização de sua resiliência. Como argumento Shwaikh, a idealização do sumud priva as pessoas do direito de se cansarem, se assustarem ou se quebrarem. Nega-se a possibilidade de que os palestinos digam: “Isso é demais”.
O que querem muitos palestinos não é serem vistos como herois, mas como pessoas. Que tenham o espaço do luto, do choro, da falha, do descanso. “Ser tratados como seres humanos” - como escreve Shwaikh - “livres de estigma ou preconceitos”.
Badar Salem é uma escritora e editora palestina radicada em Montreal.