Mensagem em um Caderno Escolar
Salman Kayyoush
Tradução do árabe por Yara Osman
O repórter iniciou sua matéria com uma risada e disse:
— O cinegrafista mostrará os movimentos de um terrorista louco — e como há muitos por aqui, vamos acompanhá-lo. Lá está ele, vejam só. O zoom da câmera alcança até 500 metros; caso contrário, nem conseguiríamos filmá-lo. Ele está em meio ao fogo — e, como é louco, vocês veem que não se importa. Lá está, olhem como desafia com sua funda de pedras tudo ao redor, em meio aos horrores.
*******
A solidão silenciosa, carregada de um perigo iminente, o impeliu a fazer algo — qualquer coisa. Pensou em dizer uma palavra, ou escrevê-la, ou então morrer de uma forma diferente daquela que esperava. Abriu seu computador, embora soubesse que as forças inimigas haviam cortado a internet desde o primeiro dia do ataque a Gaza, tornando os aplicativos frios, sem sinal de vida.
Leu, na capa de um caderno escolar antigo, o nome de sua filha, Fadia, que havia emigrado e se casado nos Estados Unidos. Com uma caligrafia infantil, Fadia escrevera seu nome, e logo abaixo, uma frase repetida em todos os seus cadernos: “Registre: eu sou árabe.”
Apoiou os cotovelos sobre uma mesinha e cobriu a testa com a palma da mão. O estrondo das explosões forçava seu cérebro a funcionar de maneira rápida e excepcional. Abriu o caderno e escreveu, com letra firme e elegante:
Minha querida filha Fadia,
Que a paz de Deus esteja contigo, enquanto aqui carecemos de paz...
Quero apenas que estejas bem. Promete-me que ficarás bem nem minha ausência, agora que estou certo de que encontrarei aqueles que da tua família já partiram. Fica bem e não me decepciones — tu és a última a carregar meu nome.
Escrevo-te sem muita esperança de que encontres esta carta. Por isso, deixá-la-ei na tua mochila escolar, pois sei que ela era teu bem mais querido entre tudo o que deixaste aqui. E sei que será a primeira coisa que procurarás quando entrares novamente na nossa casinha.
Se a casa desabar sobre mim, contudo, — o que é o mais provável —, não sei como a encontrarás.
Fadia,
Consegues imaginar o formato de uma carta cujo autor acredita — não, tem certeza — que será a última? Consegues adivinhar o estado de espírito de quem a escreve? É por isso que quero que minha carta tenha a forma de cicatrizes cravadas nas paredes do teu coração — que nunca te esqueças dela. E se um dia a encontrares, respondas, mesmo que já saibas da minha morte, porque lerei tua resposta em meu novo mundo.
Neste instante, estou tomado por um último desejo: que minha morte eleve a vida da minha única herdeira. Leias e releias esta carta muitas vezes, vestida de luto, pois isso me trará paz na cova — se eu tiver a sorte de ser enterrado em uma. Muitos aqui, do meu povo e do teu, têm seus corpos em decomposição sob os escombros de suas casas.
Sei que estás acompanhando o que se passa aqui. Vi repórteres de inúmeras emissoras americanas circulando pelas ruas de Gaza depois de cada onda de bombardeios — sejam de aviões ou artilharia pesada. Até cheguei a perguntar por ti, como se pudessem conhecer-te! Disse-lhes, com convicção: “Ela é minha filha, Fadia — tem a juventude das flores orvalhadas, a tez morena dos árabes, o negro de seus olhos, e um coração do tamanho da Palestina. Não a conhecem?”
Muitos deles falam árabe fluentemente, mas mesmo assim se afastam de mim, com um olhar de estranhamento — por mim, e pela pergunta.
Escrevo-te agora, enquanto o estrondo das explosões não cessa. Já consigo distinguir entre o som das bombas caindo e o de suas explosões, além de outros sons — os da queda dos edifícios. Um prédio habitado tem um som diferente ao desabar. Nele, ouço o sufocamento dos que estão dentro, as bocas escancaradas se enchendo de poeira dos escombros, o som das esperanças sendo rompidas, e dos sonhos anunciando seu fim desesperado.
Seus gritos, esses não ouço, pois a explosão é muito mais alta.
Já passa das três horas da manhã, no fuso horário da aniquilação de Gaza. Ainda assim, o céu parece em pleno amanhecer. É que a Gaza de agora não tem mais opção senão seu longo e cruel dia.
Apesar de estar com os pulmões perfurados pela dor da tua partida, não me resta agora senão dar-te os parabéns, minha filha, pela vida que escolheste nesse país de onde só nos chegaram as mais avançadas tecnologias de morte rápida, com bombas que destroem tudo, lançadas por aviões fabricados aí, onde tu vives. E ainda assim, te felicito. Aproveita a tua chance de viver nesse lugar, ainda que eu tivesse preferido que te abrigasses noutro.
Sejas feliz — e muito. Tu precisas ser, pois és a última a permanecer viva; a última do meu sangue a carregar, sozinha, esta dor.
Eu peço agora a Deus, o Altíssimo, que me conceda tempo suficiente para terminar esta carta — ainda que a dilaceres.
Suporta-me, minha filha, e suporta as notícias que te dou. Não as escondo de ti: teus dois irmãos foram mortos, junto com muitos outros, num bombardeio contra uma escola que abrigava deslocados — mesmo depois de as forças inimigas a declararem um “local seguro”.
Sinto por eles uma dor ainda maior, porque não tombaram com as armas nas mãos. Disseram-me, ao sair de casa rumo ao abrigo, que conseguiriam armas com facilidade. Conheciam bem os muitos caminhos dos túneis, e pretendiam entrar num deles assim que cessasse o tiroteio contra corpos em movimento. Mas o meu destino — e o deles — tinha uma palavra diferente a dizer.
Sabes que um pouco de desespero pode ser também um consolo?
Não me resta mais nada a almejar, além de ver-te livre na Palestina. E como os poucos dias que me restam não indicam que verei esse dia, é por isso que me encontras desesperado, limitado a olhar fixamente para a bandeira do meu país que desenhei na parede de nossa casa — depois que tiraram a flâmula do mastro do prédio onde moramos, rasgando-a.
Mas sou forte o bastante para passar a ti minha esperança de vida — e de ti para toda a Palestina.
Quanto me entristece ver aquelas pequenas bolas brancas de naftalina que tua mãe, que Deus a tenha, cuidadosamente colocava nos armários das roupas — porque me lembram do bichinho que rasteja até o meu coração, mesmo ele ainda batendo forte. Peguei aquelas bolinhas nos dias que se seguiram ao 7 de outubro e as joguei sobre os escombros de uma casa isolada próxima, de onde o cheiro de seus moradores soterrados ainda exalava.
Ali, a naftalina terá um sentido mais claro junto aos mártires — protegendo-os do que a morte poderia lhes impor.
Não estou derrotado, minha filha, apesar do imenso desespero que me consome, e não estou triste enquanto continuarmos a construir nossa vida conforme o sonho no qual acreditamos há mais de setenta anos.
Tenha certeza de que tento, dentro do que posso, negar a língua da derrota que escapa pelos meus dedos e impõe sobre mim, contra minha vontade, seu alfabeto — não porque esta seja minha última mensagem, mas porque és a última da minha família.
Tenho de ser firme e parecer mais forte, apesar da morte avançar. Enquanto te escrevo agora, minha caneta treme, teu caderno balança a todo momento, quase caindo da minha mão a cada explosão, e temo que a próxima bomba não erre o meu corpo.
Tu me perguntarás: por que, então, não saio de casa? E eu te digo que minhas chances de sobreviver fora dela são muito menores do que dentro, porque eles apontam suas miras a laser para tudo o que se move.
Estou num momento em que a vida concentra tudo o que passou até agora em instantes dolorosos, e mesmo assim não quero mais que me concedam tempo suficiente para terminar minha carta.
Quero apenas alguns minutos para que minha tinta possa dizer sua palavra, porque a considero importante e valiosa como meu sangue — talvez até mais valiosa — pois ela ficará visível no papel do teu caderno escolar, enquanto meu sangue se espalhará.
Mas não posso comparar minha tinta com o sangue dos teus irmãos, e com o dos milhares do teu povo que estão sendo assassinados agora, a cada instante, pois simplesmente não posso disputar o que é dos outros.
Sinto, com a caneta tremendo em minha mão, uma morte que já aceitei. Então para que escrever sobre ela se está bem diante de mim neste momento?
Isso não é o que importa — o que importa és tu.
Como enfrentarás o mundo depois de nós?
E poderás dizer, depois da minha morte, que tens uma família na Palestina, em Gaza especificamente, a cidade que se esvaziou de nós?
Sei que o mundo inteiro nos vê e testemunha o que enfrentamos, e certamente tu acompanhas as notícias da tua Gaza com lágrimas que não sei quem secará depois de nós. Mas o que deves saber é que as câmeras das emissoras só mostram as superfícies, as aparências; o âmago e a essência são muito maiores do que o mundo pode ver.
As imagens das câmeras são rápidas, breves e passageiras; já o que permanece além delas é maior do que fotos, câmeras e repórteres que se escondem em lugares muito seguros, conhecidos pelas forças inimigas, e que delas não se aproximam.
Será que a câmera dos meus olhos pode captar o que o mundo desconhece?
Foi isso que me empenhei em te transmitir — o relato cru daqueles que sofrem numa terra onde tudo o que é vivo está sendo exterminado —, pois nada é mais nobre do que a voz fresca dos que padecem.
Meus olhos viram uma mãe amamentando seu filho. Estava morto, mas mesmo assim ela trouxe sua boca ao seio. Ela o resgatou, tendo conseguido encontrá-lo facilmente entre os escombros, como se pudesse sentir seu cheiro apesar dos muitos corpos enterrados ao redor.
Meus olhos viram um jovem carregando sua perna amputada, abraçando-a contra o peito como se tivesse certeza de que ela voltaria ao lugar intacta, caso a regasse com suas lágrimas e com o calor do seu abraço, hidratando a secura da carne.
A câmera dos meus olhos guardou a imagem de uma criança, talvez com cerca de dez anos, que ficou muito tempo junto ao corpo da mãe, recusando-se firmemente a soltar seus braços. Quando aqueles ao redor, suplicando para que ela a deixasse, perderam a esperança e o abandonaram para lidar com outras tragédias, ela adormeceu — talvez tenha morrido — com o rosto no colo materno.
Com meus próprios olhos vi uma mulher que não aceitava a morte de seus filhos despedaçados; ela foi extremamente séria ao dar-lhes água, um por um, no pátio externo do hospital onde os corpos eram expostos...
E se eu quisesse descrever tudo o que meus olhos viram, teu caderno acabaria antes que a corrente da minha câmera ocular se esgotasse.
Lembras-te da minha raiva e tristeza quando tu ou algum dos teus irmãos quebravam um vaso, um prato, seja por descuido ou mesmo por negligência? A minha tristeza era grande, mesmo sabendo que não fazíeis por mal. Agora, consegues imaginar a minha dor e a minha ira ao assistir à destruição e ao esmagamento de uma cidade inteira, um país inteiro com tudo o que nele existe — até os ossos do seu povo — de propósito, com intenção clara e antiga?
Porque te conheço e sei o fervor do teu sangue, imagino que dirás, com o peito apertado de raiva por mim: “Por que não resistes? Por que não ergues a tua recusa, se morrerás de qualquer forma? Eu sei que estás desarmado. Mas, onde estão as pedras de Gaza com todos os seus escombros? Confio em ti contra a opressão, então como aceitaste esperar pela morte em tua própria casa?”
Tens todo o direito de me fazer essas perguntas educadas de protesto, e ainda mais o direito de erguer tua voz contra minha mensagem, caso a leias. Porque não houve oportunidade de vos ensinar a dignidade de viver que eu não tenha demonstrado diante de vocês.
Espero, porém, filha minha. Meu vizinho, muito mais novo do que eu — um jovem da tua idade — prometeu-me, há pouco mais de uma hora, que me traria um velho rifle guardado em casa pela família há décadas, a arma com que seu avô lutou. Quando perguntei: “E tu, com que lutarás?” ele respondeu sorrindo — imagina seu sorriso em tempos em que a tristeza avança pomposa por Gaza — “Tenho uma nova arma que combina com a minha idade”. Depois riu, fazendo um trocadilho com a minha idade avançada!
Mas ele ainda não voltou, apesar de morar no mesmo prédio que nós.
O que achas que o atrasou?
E se ele não voltar — e já comecei a preparar-me para essa grande possibilidade — tenho uma funda. Não duvido que a tenhas visto em nossa casa antes da tua partida; falo daquela que teus irmãos usaram para lançar pedras contra nossos inimigos, escondidos em seus veículos blindados.
É tudo o que me resta. Sairei com ela e não te decepcionarei.
Quero um fim digno para a minha mensagem. Não quero que ela fique incompleta por causa do corte das minhas artérias e veias por uma bomba surpresa que caia no teto e me derrube, levando comigo o último suspiro.
Sejas forte. Eu também serei.
*******
O repórter encerrou sua transmissão, que durou cerca de cinco minutos, dizendo:
— E agora, caros telespectadores, mostrarei uma imagem que considero excepcional, revelando a audácia do terrorismo do Hamas, e de todo o povo de Gaza. Vocês verão o corpo de um homem que quase chegou aos setenta anos de idade. Viram como ele atirava pedras com uma funda contra um dos drones que sobrevoava baixo? Aqui está seu corpo; quanto à funda, provavelmente está debaixo dele. Reparem no braço direito: o que vocês veem enrolado na mão dele é a funda. Vou mostrar imagens dele de uma distância mais próxima assim que o bombardeio diminuir. Mas o que não compreendi foi a presença de uma pequena bolsa, que parece ser escolar e não combina com ele, firmemente segurada pela mesma mão que segura a funda. Sem dúvida, ela contém uma bomba ou um cinto explosivo que explodirá na cara de quem se aproximar. De Gaza, Sam Harrison, para a Segunda Emissora de Notícias dos Estados Unidos.
Salman Kayyoush (Bagdá, 1958), é romancista, acadêmico e tradutor. Possui doutorado em Educação e Psicologia, e é membro do Sindicato dos Professores, do Sindicato dos Jornalistas e da União Geral dos Escritores e Literatos do Iraque. É autor de várias obras literárias, incluindo contos, romances, textos experimentais, além de traduções do inglês para o árabe.