O Significado de Ishtirakiyyah: Percepções Árabes do Socialismo no Século XIX

Mourad Magdi Wahba

Publicado originalmente em: Alif: Journal of Comparative Poetics, n.10, Marxism and the Critical Discourse (1990), p. 42-44. American University of Cairo Press.

Tradução de Gustavo Racy


A palavra “socialismo” é de origem relativamente recente nas palavras europeias. Ela aparece pela primeira vez nos anos 1830 para descrever o sistema de reorganização da vida social de Robert Owen e Fourier. Desde então, porém, o termo adquiriu uma variedade de significados e, agora, demanda o uso de adjetivos para especificar a conotação precisa desejada pelo emissor. Socialismo, assim, pode ser democrático, nacional, cristão, burocrático, Fabiano ou revolucionário. Ideologias que se proclamam socialistas vão da extrema direita e de uma forma branda de trabalhismo a uma ideologia social revolucionária.

A variedade de conotações carregadas pelo termo “socialismo” também existe no contexto árabe. Socialismo (traduzido como ishtirakiyyah اشتراكية) carrega muitas conexões para ser usado por conta própria. Em meados do século XX, o termo geralmente é usado de maneira indiscriminada, por exemplo no Egito, por uma variedade de forças políticas, incluindo a esquerda, o Wafd, os Saadistas, os Constitucionalistas Liberais, os Wataniyyun, a Kutla e os partidos cripto-fascistas do Jovem Egito (Tignor, 182: 31). Torna-se necessário, então, distinguir várias conotações do termo; por isso o desenvolvimento da ideia de ishtirakiyyah era o sistema recomendado pelo Profeta e prevalente durante seus anos como governador de Medina. Na minha opinião, isto é melhor exemplificado por um verso de Shawqi:

الاشتراكيون أنت أمامهم     لولا دعاوي القوم والغلواء

(Pois vós sois o Imam dos Socialistas [Oh Muhammad], a despeito das afirmações do povo e se seus excessos)

Posteriormente, ishtirakiyyah se tornou ‘arabiyyah, com opiniões divididas entre isto se referir a uma aplicação árabe de um socialismo científico universal, ou um socialismo não-marxista enfaticamente árabe. Mais recentemente, a constituição da República Árabe do Egito (artigo 1), descreve o país como tendo um sistema de governo “socialista democrático” (ishtiraki dimuqrati). Este tipo de de socialismo não parece conflitivo com a privatização da economia e com manobras militares conjuntas com o exército dos EUA.

O termo ishtirakiyyah, portanto, em árabe como em outros idiomas, parece ser um termo com significados, conotações e referentes variados. É um termo formado de diversas camadas de significado, cada um com antecedentes históricos e conotações particulares a seus usuários. Este artigo é uma tentativa de de identificar a arqueologia do termo ishtirakyyah, suas várias camadas, referentes histórico e mesmo silêncios, as ocultações deliberadas que formam o campo semântico do termo.

Etimologia: Origens Islâmicas.

A Academia da Língua Árabe no Cairo legalizou a forma ‘ishtirakiyyah apenas em 1834, argumentando que a criação de uma raiz, masdar, foi possível ao adicionar ya’ al-nasab, (ياء النسب), seguido de ta’ al-ta’nith (تاء التأنيث) como indicador do gênero feminino. Palavras formadas desta maneira tornam-se um masdar, e são tratadas como adjetivo. Assim, jumhuriyyah, descreve um país sob governo republicano, e ishtirakiyyah uma teoria daqueles que pretendem generalizar Ishtirak, e uma sociedade baseada nesta teoria (Amin, 1986, s/p).

Ainda que a legalização do masdar seja recente, a raiz verbal sh-r-k é de origem muito mais antiga. A raiz tem vários significados relacionados à ideia de associação ou parceria: opiniões, atributos (na retórica), politeísmo, poligamia, uma sociedade anônima, uma Comunhão (a Eucaristia) (cf. Wehr, 1961). Dicionários antigos como o Taj al-Arus ou o Lisan al-’arab também incluem dois exemplos: o primeiro destes é uma Tradição do Profeta (Hadith): “Pessoas são parceiras em abrigo, água e fogo”; e a segunda é uma citação do Califa Omíada Omar Ibn Abdel Aziz sobre os efeitos do al-shirk, ou da propriedade compartilhada da terra, ser lícita entre os habitantes do Iêmen (cf. Taj al-’Arus).

Deste modo, a raiz sh-r-k existiu na península árabe desde os tempos pré-islâmicos. Ela carrega duas conotações opostas: uma negativa relativa ao politeísmo, e uma positiva relativa à propriedade comum, em alguma forma de lei natural, sobre as necessidades da via (água, fogo e abrigo). A ideia de propriedade conjunta também pode ser vista em vigor no Iêmen pré-islâmico, como forma de arranjo legal de direitos. Após a Hijra, a Fuga Sagrada para Medina, parece que alguma forma da comunhão de propriedade e gastos para o bem-estar dos vulneráveis foi estabelecida entre os mecanos e seus apoiadores em meca, no momento em que o Profeta estabelecia a Umma, a comunidade de crentes.

Tão cedo quando o século VII, assim, parece que a raiz sh-r-k, é associada à prática social da partilha e da propriedade conjunta. As conotações positivas do termo, porém, como descrevendo uma prática social apoiada pelo Profeta, mudariam no século XIX, com os primeiros encontros com os socialismos europeus.

Primeiros encontros

Os primeiros contatos entre o Império Otomano e o nascente pensamento socialista na Europa ocorreram muito cedo. Assim, já em 1845, o governador de Esmirna mostrou a um visitante inglês um documento que havia apreendido: "uma proclamação socialista recentemente publicada em Paris" (MacFarlane, 1962, 195). Três anos depois, um refugiado húngaro da repressão que se seguiu à revolução de 1848, em parceria com "um certo Roth", mantinha uma livraria em Istambul que fornecia aos Jovens Otomanos "os mais recentes panfletos e tratados políticos surgidos na Europa" (Mardin, s/d, 195).  

Esses contatos, embora limitados, parecem ter sido importantes o suficiente para justificar a inclusão de um verbete "Socialismo" em um dicionário inglês-turco publicado em 1861. Esse parece ser o primeiro uso do substantivo verbal ishtirak na definição de socialismo (istirak-e-amval) (Redhouse, 1861, 695).

As revoluções de 1848 não parecem ter tido o mesmo impacto na consciência árabe contemporânea. Por exemplo, o futuro historiador e romancista Ali Paxá Mubarak, que, em 1848, vivia na missão militar egípcia em Paris (no 97 Boulevard Saint-Michel), não menciona os Dias de Junho em seu romance amplamente autobiográfico ʿAlam ad-Din, que consiste principalmente em uma descrição dos costumes franceses. Os outros membros da missão militar também permaneceram em silêncio sobre eventos que ocorreram literalmente à sua porta (Louca, 1970, 103).  A fortiori, os despachos egípcios de Paris não mencionavam o socialismo ou tentavam traduzi-lo. Isso parece bastante estranho, considerando o clima de desconfiança mútua e a leitura cuidadosa no Egito da imprensa otomana, que incluía notícias sobre os distúrbios na Europa. Portanto, mesmo que os membros da missão parisiense tivessem relutado em mencionar desenvolvimentos políticos por medo de censura (afinal, eram parte de uma missão militar), deveria ter havido alguma menção no Cairo aos relatos turcos sobre 1848. No entanto, ainda nos deparamos com silêncio – e isso em um país onde saint-simonianos haviam escolhido viver.  

A Revolução de 1848 foi vagamente relatada em árabe no jornal oficial da Argélia Francesa, ironicamente intitulado al-Mubashir: O Portador de Boas Novas, em 30 de junho de 1849 – um ano após os eventos. O texto se refere vagamente aos revolucionários como "o povo do mal" (ahl ash-sharr, أهل الشر) que "buscavam a iniquidade em Paris e Lyon" (saʿū fil-fasād bi-Paris wa-Lyon, سعوا في الفساد بباريس وليون). As referências vagas a 1848 e a ausência de menções ao socialismo desta vez não podem ser atribuídas à ignorância. Em 1848 a Argélia já era uma colônia francesa, e Le Porteur de Bonnes Nouvelles (como era conhecido em francês), anterior à revolução, não tinha problemas em relatar comunicados da corte e visitas oficiais.  

A Comuna de Paris de 1871

O relativo descuido com que as notícias das revoluções europeias de 1848 foram tratadas parece ter impedido o tratamento do socialismo em árabe durante a primeira metade do século XIX. Esse descuido, no entanto, seria remediado pela ampla cobertura dos eventos da Comuna de Paris em 1871. A cobertura jornalística da Comuna na imprensa de língua árabe inevitavelmente levou autores árabes a especular sobre a ideologia das facções em guerra na França e a discutir com certa especificidade os conteúdos do socialismo como ideia.  

A cobertura relativamente extensa da Comuna, em contraste com o descaso pelas revoluções de 1848, pode ser explicada, na minha opinião, por duas razões. Em primeiro lugar, antes da década de 1860 , não havia reportagens árabes independentes. Houve o fracassado al-Tanbih da campanha napoleônica, seguido pela publicação de al-Waqa’i‘ al-Misriyya, fundado em 1828 como um jornal oficial que divulgava cópias de leis e decretos, em vez de notícias estrangeiras. As notícias estrangeiras só passaram a ser relatadas com alguma regularidade após a década de 1860 [1] em três jornais: Wadi al-Nil (O Vale do Nilo), lançado em 1866 como a versão árabe de Le Nil, publicado no Cairo. Assim como sua contraparte francesa, Wadi al-Nil baseava suas reportagens em telegramas da Europa, além de traduções de jornais europeus. Ambos os jornais estavam ativos na política nacionalista emergente. De fato, em suas memórias, Nubar Paxá refere-se aos escritores franceses de Le Nil como "ces messieurs les meneurs" (Ghali, 1983, 394), uma acusação dificilmente surpreendente, uma vez que o editor não era outro senão Charles Blanc, irmão de Louis Blanc, exilado da França após 1848.  Blanc, porém, não era a única pessoa familiarizada com o socialismo no Cairo; o correspondente de Le Siècle designado para cobrir a inauguração do Canal de Suez em 1869 era um garibaldino (Carre, 1956, 313). É uma questão de especulação se Charles Blanc ou Louise Colet, escrevendo para Le Siècle em 1869, tiveram alguma influência sobre jornalistas e intelectuais egípcios. Wadi al-Nil, no entanto, encerrou suas publicações em março de 1871, justamente quando os eventos da Comuna estavam começando. Portanto, sua discussão sobre ideias socialistas foi limitada. Seu editor, Abdallah Effendi Abul Seoud, era aluno de Tahtawi e colaborador de Ali Paxá Mubarak. Abul Seoud era tradutor do francês e, de fato, chefiou o departamento governamental de traduções. Não parece exagerado supor, portanto, que ele teria tido algum contato com as correntes intelectuais na França da época. A partir de seus editoriais em Wadi al-Nil, fica claro que Abul Seoud estava tão familiarizado com as forças políticas na França quanto com a topografia de Paris.  

Em Beirute, outro periódico surgia semanalmente, Al-Jinan (Os Jardins), de propriedade e administração de Salim al-Bustani, membro da família que teria um impacto importante na transmissão de ideias ocidentais para o Levante e o Egito.

Al-Jinan, que foi publicado ao longo da Comuna, baseou seus artigos numa variedade de fontes: The Times de Londres, o jornal de Versalhes La Situation, assim como o Le Cri du Peuple, que falava pelos comunnards.

Um terceiro jornal foi publicado por outro sírio-libanês, Ahmad Faris al-Shidiaq, em Istambul: al-Jawa’ib (Marés). De acordo com Albert Hourani, “al-Jawa’ib foi o primeiro jornal árabe importante a ser publicado de fato: o primeiro a circular onde quer que o árabe fosse lido, e a explicar os problemas da política mundial…”. Hourani cita C.M. Doughty, que afirma que “o periódico circula em todos os países de fala árabe: encontrei-o nas casas comerciais Nejd em Mumbai” (Hourani, 1962, 98). O editor do al-Jawa’ib tinha estado na Inglaterra em 1848 para ajudar a auxiliar uma tradução do Novo Testamento, e suas interpretações das ideias presentes durante a Comuna deve muito ao seu entendimento do comunismo primitivo descrito no Ato dos Apóstolos.

A primeira razão para a discussão das ideias socialistas, tal como debatidas na Europa, reside na existência de um grupo de jornais regulares que começaram a ser publicados em árabe no final da década de 1860. A segunda razão, na minha opinião, é que os eventos parisienses ocorreram simultaneamente ao desenvolvimento da guerra franco-prussiana. Era difícil relatar a guerra sem mencionar o que acontecia em Paris. Alguns relatos sobre a Comuna eram, portanto, inevitáveis, e nesses relatos, as ideias que motivavam os protagonistas tinham de ser apresentadas.  

Al-Jinan, o jornal de Salim al-Bustani, noticiou os eventos da guerra franco-prussiana que antecederam a declaração da Comuna com base no London Times. Os despachos de guerra eram, portanto, traduções e tratavam de um assunto que seria bastante familiar aos leitores de Al-Jinan: duas potências militares em conflito, e a potência derrotada testemunhando uma mudança de governo. Foi quando Salim al-Bustani decidiu interpretar os eventos da Comuna que deixou de traduzir relatos da imprensa em seus editoriais, intitulados khulasa siyasiyyah (resumo político).

A principal causa que permitiu que alguns dos residentes [de Paris], dentre os quais havia muito tumulto (al awbash), desobedecesse foi a falta de contentamento. Aquelas pessoas só encontravam apoio no partido da revolução, chamado de partido vermelho, para provocar distúrbios na paz e na ordem e depor o governo em vigor, bem como a assembleia que o apoiava. Eles se uniram e ficaram conhecidos como “vermelhos”, demandando parte (al-ishtirak) na riqueza. Eles se tornaram agitados e confiscaram os canhões em Montmartre… seu objetivo era estabelecer uma comuna (associação municipal jam’iyyah baladiyyah), dentre outras coisas) (Al-Jinan, 1871, 351-353).

A despeito de suas opiniões evidentemente anti-communard, Bustani foi o único jornalista árabe a usar fontes simpáticas à revolução. O Journal Officiel foi traduzido em defesa da al-jam’iyyah al-baladiyyah, e o Le Cri du Peuple, de Jules Valle, forneceu a Bustani o material para um artigo descrevendo a revolução (al-thawrah), chamando a Comuna de al-majlis al-baladi

Parece claro, assim, que a terminologia de Bustani para descrever os eventos de 1871 ainda não é final. A mesma falta de precisão é evidente em suas tentativas de traduzir o conceito de socialismo aos leitores árabes. Assim, Louis Blanc é descrito como chefe do “partido da república que não é moderado” (hizb al-jumhuriyyah ghair al-mu’tadilah) (Al-Jinan, 1871, 357). Outro editorial do Al-Jinan, desta vez escrito por, Antun Sabbagh, colaborador de Bustani, descreve o partido socialista como “o partido da participação geral no dinheiro e na propriedade” (hizb al-ishtirak al-’amm fil mal wal amlak) (Al-Jinan, 1871, s/p). Ambos os editorialistas mostram sua familiaridade com a política francesa e usam a forma ishtirak em suas descrições do socialismo.

Em Wadi al-Nil, os artigos também se baseavam na imprensa estrangeira, embora frequentemente de forma indireta, através de traduções do Le Nil. Abul Seoud parece encontrar-se em certa dificuldade. Por um lado, ele claramente traduz artigos - pelo menos de forma velada - simpáticos à Comuna. Isso fica evidente quando atribui as visões dos communards à maioria da população parisiense: "os habitantes desta famosa cidade, cuja maioria são adeptos da seita da república e inclinam-se para um governo popular" (ahali hadhihi'l hadirah al-shahirah alladhin aktharuhum mutamadhibun bi madhhab al-hukumah al-ahliyyah) (Wadi al-Nil, 1870, 5).

Ainda assim, Abul Seoud não tenta em lugar nenhum descrever as visões dos communards, ou mesmo se referir a eles. Assim, a despeito de descrições precisas de movimentações de tropas por Paris, a única referência a ideias políticas em Wadi al-Nil, descrevem os partidos em disputas eleitorais como “os adeptos moderados da seita republicana e os adeptos da seita que pretende manter a situação como estava, descritos como conversadores”. Em outra edição, os candidatos parlamentares são descritos como “seguidores dos princípios originais [legitimistas?] e os republicanos e os moderados” (Wadi al-Nil, 1871, 7). Os socialistas são conspícuos por sua ausência, e isto num jornal que dependia de traduções de artigos redigidos pelo irmão exilado de Louis Blanc.

O terceiro jornal é muito mais explícito em seu tratamento da Comuna e dos socialistas. É o al-Jawa’ib, de Ahmad Faris al-Shidiaq, publicado em Istambul. Al-Jwa’ib contem as únicas discussões jornalísticas das metas e da ideologia da Comuna, ainda que de um ponto de vista antagônico. As reportagens do jornal são baseadas em emissões da Reuters, traduzidas e comentadas por Shidiaq. Quando a Comuna se instaurar, Shidiaq afirma que a revolta parisiense é muito mais importante do que as notícias de resistência francesa perante a ocupação alemã:

Durante o cerco [de Paris], quaisquer lutas que tenham se dado entre o partido da república vermelha e o governo são mais importantes para nós do que as lutas entre os soldados [franceses] e os soldados alemães (al-Jawa’ib, 1871, 1-2)..

Num editorial de 29 de março, Salim Effendi Shidiaq, o diretor do al-Jawa’ib, arguments que os adeptos “deste partido” agora controlam “as casas dos ricos, as lojas e os escritório do governo”. Eles clamam pela “partilha da propriedade daqueles que as detêm (musharakat al-nas dhuwi’l amlak fi amlakim), clamando por uma comuna, que significa a participação na propriedade” (Al-Jawa’ib, 1871, 1-2).

Talvez o mais surpreendente dos artigos de Shidiaq seja o que discute a chegada da Comuna em Lyon e Marselha. Neste artigo, a doutrina dos communards é traduzida como “o caminho da participação” (tariqat al-ishtirak), o mais próximo que chegamos ao sentido moderno de ishtirakiyyah. No artigo, relata-se o envolvimento do filho de Garibaldi na luta pelo estabelecimento da “République Social” (jumhuriyyah ‘umumiyyah), bem como a relação dos communards com a Internacional:

Eu afirmei que o significado da Internacional é "o que existe entre as nações". O que se pretende com este termo é que sua lealdade ('asabiyyah) está voltada para todas as nações, sem considerar diferenças de raça ou doutrina, mas os membros desta liga são artesãos e trabalhadores. Sua coalizão é construída sobre o benefício próprio e o fortalecimento de sua posição em todos os reinos (Al-Jawa’ib, 1871, 3).

A parte mais interessante do artigo, no entanto, tenta traduzir as ideias do socialismo para o leitor árabe. O socialismo é atribuído ao "partido da participação", seguindo o exemplo dos Atos dos Apóstolos (capítulo IV), "que é um Livro inspirado dos nazarenos, assim como o Evangelho, os Salmos e a Torá". Em seguida, há uma discussão detalhada sobre a história de Ananias feita pelo tradutor dos Atos para o árabe (Al-Jawa’ib, 1871, 2) [2].

Essa ligação entre socialismo e religião, ainda que de uma religião diferente, provaria ser uma característica duradoura das percepções árabes sobre o socialismo. É fácil entender, a partir das citações acima, o dilema dos jornalistas árabes. Deveriam ser objetivos sobre a Comuna (al-kumun) como um assunto interno, concernente apenas aos franceses, e repreensível devido à destruição de propriedade e interrupção da vida normal decorrentes de qualquer revolução? Ou deveriam ser críticos de al-ishtirak fil-amwal (o compartilhamento de bens) por causa do conteúdo da ideologia, independentemente do resultado da revolução?

Talvez apenas Shidiaq tenha conseguido resolver o problema através de um deslocamento de seus termos para o passado, o território proibido da controvérsia religiosa. Assim, Shidiaq pôde descrever a luta fratricida, a fitna (discórdia), sem expressar uma opinião sobre as ideias em jogo - estas eram peculiares aos cristãos e referiam-se a incidentes de sua tradição. No entanto, a posição de Shidiaq baseia-se em uma desconstrução consciente do Islã na interpretação da Comuna. Esse silêncio sobre o Islã negligencia relacionar a palavra ishtirak (compartilhamento) à raiz sh-r-k, que, como tentamos mostrar anteriormente no texto, de fato possui conotações islâmicas.

Ishtirakiyyah na História

Se relatos contemporâneos à Comuna encontraram dificuldade em interpretar o socialismo para leitores árabes, isto não parece ter se dado por conta da ignorância dos jornalistas. Os despachos estrangeiros parecem ter chegado aos jornalistas árabes com relativa regularidade no início da década de 1870, assim como cópias de jornais estrangeiros. Além disso, os jornalistas árabes quase certamente estariam familiarizados com algum conceito de socialismo, seja através dos refugiados de 1848, de suas viagens ao exterior, ou mesmo através de membros da imprensa no Cairo, por exemplo, que professavam ideias socialistas. A relutância em discutir o socialismo, ou o deslocamento de suas ideias para um passado cristão, parecem ter sido tentativas de evitar entrar em uma controvérsia política.  

Uma vez passados os eventos da Comuna, porém, eles podiam ser discutidos com segurança - até mesmo relacionados a um passado árabe. Isso é melhor visto no periódico al-Muqtataf e na enciclopédia anterior Kitab Da'irat al-Ma'arif. O volume de 1878 da enciclopédia de Bustani, contendo a letra hamza, inclui um artigo sobre ishtirak, mas não sobre ishtirakiyyah. Esse artigo, no entanto, trata exclusivamente do significado retórico do termo e não menciona o socialismo uma única vez. Para encontrar o artigo sobre ishtirakiyyah, é preciso esperar pelo verbete sosyalizm no volume contendo a letra “S” da enciclopédia, publicado em 1898. Lá, pela primeira vez, ishtirakiyyah aparece como a tradução, entre parênteses, de “socialism”.  

Butrus al-Bustani discute, nesse artigo, as origens europeias do socialismo, vinculando-as à filosofia e à religião. Isso pode ser visto em sua análise da República de Platão, seguida pelas doutrinas dos essênios e das primeiras seitas cristãs que, apesar da obscuridade de seus ensinamentos, compartilhavam propriedades (ishtarak fil-mal). As origens do socialismo são então ligadas às comunidades medievais, à Reforma e à “Utopia” de Thomas More. O artigo de Bustani segue de perto a estrutura do verbete de Larousse na Grande Encyclopédie du XIXe Siècle, discutindo Babeuf, Saint-Simon, Owen, Fourier, Louis Blanc, Marx e Proudhon.  

Bustani não distingue entre as doutrinas das várias escolas do socialismo, embora todas sejam mencionadas: os niilistas (‘adamiyyun), os anarquistas (fawdawiyyun), os comunistas (‘ammiyyun), também conhecidos por ele como "os vermelhos", e os carbonários (al-fahhamin). Mais importante, embora Bustani seja crítico do socialismo, ele apresenta evidências da existência de tendências socialistas na história tribal árabe. Essa fawdawiyyah (anarquismo) é atribuída por ele ao desaparecimento de líderes nas tribos mais dispersas (Bustani, 1898, s/p).  

Em seus artigos no periódico al-Muqtataf, Bustani teve mais liberdade para ser crítico em relação ao conceito de socialismo. Assim, em 1890, ele discute e apresenta argumentos contra o socialismo, afirmando: "Isso poderia ser considerado inicialmente útil, pois defende a participação dos pobres no dinheiro dos ricos; mas é iníquo, pois esse compartilhamento é tão passageiro quanto uma nuvem de verão (...) os princípios socialistas são prejudiciais, não importa como sejam apresentados” (al-Muqtataf, 1890, 361-364)..  

Quatro anos depois, al-Muqtataf publicou um artigo intitulado "al-Ishtirakiyyun wal-Fawdawiyyun" (Os Socialistas e os Anarquistas). O artigo afirma claramente que "al-ishtirakiyyah é a arabização da palavra inglesa socialism". Bustani então faz uma afirmação surpreendente, considerando seu artigo anterior no mesmo periódico e seu verbete posterior na enciclopédia: que ishtirakiyyah não se refere à participação (ishtirak) na propriedade. Isso, argumenta ele, é uma descrição da Comuna. O socialismo, como termo, continua Bustani, foi cunhado por Robert Owen e refere-se à reforma da sociedade para "eliminar a pobreza e a angústia, de modo que todos possam desfrutar igualmente dos dons da terra" (Al-Muqtataf, 1894, 721-729)..  

Há uma mudança clara na ênfase da conotação do termo “socialismo” – do socialismo revolucionário para a reforma social. Além disso, pela primeira vez no discurso árabe sobre o socialismo, é feita uma distinção entre socialismo e comunismo. Ao final do século XIX, o termo “socialismo” é domesticado; foi esvaziado de conotações violentas e revolucionárias. O socialismo, talvez com uma coloração religiosa – cristã primitiva ou muçulmana – poderia ser usado por uma variedade de grupos com diferentes ideologias, variando das mais brandas reformas sociais até os mais violentos revolucionários.

***

A ideia do socialismo chegou ao Império Otomano após os eventos de 1848. Durante meio século depois de 1848, intelectuais otomanos e árabes tentaram compreender a palavra e suas conotações. No último quartel do século XIX, existia uma imprensa em língua árabe suficientemente livre para discutir os acontecimentos na Europa e explicar as ideias debatidas durante esses eventos. No caso do socialismo, sustento que a tradução do termo para o leitor árabe contém várias camadas.  

A primeira conotação do termo pode ser vista em sua associação com revolução, conflitos internos, agitação e perda de propriedade e vida. É uma conotação negativa. A segunda conotação é igualmente negativa. O socialismo é visto como um conceito europeu; um que foi inventado pelos cristãos e que, portanto, poderia ser ignorado como mais uma de suas peculiaridades. Como tal, o socialismo só interessava ao intelectual árabe como espectador.  

A terceira conotação do termo socialismo está ligada a um passado árabe, islâmico ou mesmo pré-islâmico. Essa conotação deriva do uso de um neologismo baseado na raiz sh-r-k. Essa raiz denota o compartilhamento de terras no Iêmen em tempos pré-islâmicos e os direitos iguais de todos nas necessidades da vida, de acordo com uma Tradição do Profeta nos primeiros anos do Islã. Embora isso represente uma conotação positiva, refere-se a um problema de direito contratual ou a um ius naturale árabe em um nível elementar da sociedade.  

É interessante que em nenhum lugar, no discurso árabe do século XIX sobre o socialismo, encontramos uma menção às declarações do Califa Ali Ibn Abi Talib sobre justiça social, ou mesmo uma referência ao sistema dos Carmatianas no século IX d.C., por exemplo.  

Finalmente, no final do século XIX, muito depois da derrota da Comuna, outro esforço foi feito para esvaziar o socialismo de seu conteúdo histórico. Em vez disso, ele foi assimilado à reforma social, enquanto o socialismo revolucionário foi chamado de "a Comuna" (al kumun) ou o internasyonal. Ambos os termos, usados por Bustani apesar de traduções anteriores, refletem, pela preferência pela transliteração, uma tentativa de reduzir os conteúdos do socialismo revolucionário a uma série específica de eventos passados na Europa.  

No final do século XIX, o termo ishtirakiyyah era usado como equivalente árabe de Socialismo, embora não transmitisse nem seu impulso coletivo nem sua promessa revolucionária.  


[1] A influência da lei liberal de Abdel Aziz I para a imprensa é especialmente importante a este respeito. 

[2] Lembramos que Shidiaq, um revertido ao Islã, havia traduzido o Novo Testamento para o árabe na década de 1840.


Referências

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Mourad Magdi Wahba nasceu em Assiut, Egito, em 13 de outubro de 1926. É professor da Universidade Ain Shams e membro de inúmeras instituições acadêmicas e internacionais. Fundou e dirigiu a Associação Internacional Ibn Rushd para o Esclarecimento e foi premiado, entre outros, com o Prêmio Nilo para ciências sociais em 2018.


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