O Comércio Ambulante Feminino: Prática de Resistência de Gênero na Primeira Comunidade Sírio-Estadunidense
Eithar Daher
Tradução de Yara Osman
Entre as décadas de 1870 e 1950, as mulheres sírias que trabalhavam como vendedoras ambulantes na diáspora ocuparam um espaço controverso—um espaço que desafiou as normas de gênero e sexualidade vigentes. Por que o comércio ambulante era uma questão tão polarizante para as mulheres? E como ele perturbou as dinâmicas de trabalho baseadas em gênero?
Ao utilizar a palavra-chave "comércio ambulante" ou, no português, “mascate”, para iniciar sua genealogia, Charlotte Karem Albrecht, em seu livro Possible Histories: Arab Americans and the Queer Ecology of Peddling (2023), retrocede no tempo para examinar como a história inicial dos árabes-estadunidenses foi narrada em arquivos comunitários, periódicos e em alguns dos primeiros estudos acadêmicos sobre a comunidade.
Neste artigo, analisaremos com atenção o capítulo "Wandering in Diaspora: The Syrian American Elite and Sexual Normativity", da obra supracitada. Trata-se de uma análise histórica do discurso presente em periódicos sírio-estadunidenses sobre as mulheres de origem síria que trabalhavam como mascates, uma prática que alterou os padrões e códigos de normatividade sexual e de gênero da comunidade da síria(1) da época. Pretende-se, assim, responder à seguinte pergunta: como o estudo de Albrecht sobre as transformações de gênero e sexualidade ocorridas naquele período é moldado pelo trabalho feminino na primeira comunidade sírio-estadunidense?
Ter voz nos periódicos sírio-estadunidenses exigia pertencer à comunidade — e o privilégio de ditar sua narrativa dominante. Notem que utilizo "a narrativa" e não "uma narrativa" ou "narrativas" porque, segundo Albrecht (2023), esses periódicos compartilhavam uma única e mesma perspectiva, a narrativa mestra, que girava em torno da "preocupação com o trabalho das mulheres, especialmente com o comércio ambulante feminino na diáspora" (idem: 84) (2). Essa narrativa era articulada pelos "imigrantes sírios de elite" — mulheres ou homens que não precisavam trabalhar como ambulantes — ou por homens ambulantes que “sentiam que não podiam competir com o sucesso das mulheres no comércio ambulante” (ibid: 94), uma vez que essa atividade era central para a economia da primeira comunidade sírio-estadunidense.
Todos os periódicos retratavam e desprezavam as mulheres sírias mascates na diáspora coletivamente, e não individualmente. As circunstâncias e preferências que cada uma dessas mulheres enfrentou antes e depois de imigrar para o Novo Mundo foram ignoradas. Além disso, não tivemos acesso às vozes dessas trabalhadoras, que poderiam explicar por que escolheram essa ocupação, como a exerciam ou como sua idade e estado civil influenciavam suas experiências no Novo Mundo. Nas discussões sobre o comércio ambulante feminino presentes nesses periódicos, as mulheres sírias não eram sujeitos capazes de se expressar e se defender, mas sim alvos de críticas e insultos verbais.
O trabalho e a sexualidade das mulheres na diáspora foram associados pelos imigrantes sírios letrados e da elite nos periódicos para categorizar o que definia uma "boa" ou "má" mulher. Via-se o comércio ambulante feminino na diáspora como um ato de desonra; ao se dedicarem a esse trabalho, as mulheres transcendiam as restrições impostas pelas normas dos espaços de "trabalho adequado ou de gênero binário" (Albrecht, 2023: 82), como fábricas ou lojas onde parentes trabalhavam — ou, idealmente, deviam simplesmente permanecer em casa para "preservar sua honra e a honra síria" (idem: 84). Isso levanta a questão: Por que a comunidade de imigrantes sírios se preocupava mais com as mulheres no comércio ambulante do que com aquelas empregadas em fábricas?
"Um vendedor ambulante é superior a um comerciante; nós viajamos e ganhamos dinheiro... o comércio ambulante nos bons velhos tempos era extremamente atraente" (Rihani, 2012: 45), afirma o protagonista homônimo de O Livro de Khaled; ele argumenta: "pelo exercício, pelo lucro, pela experiência — estas são aquisições valiosas" (idem). Khaled, um mascate homem, sugere que o comércio ambulante é um trabalho lucrativo e aventureiro. Acredito que essas vantagens eram ainda maiores para as mascates do gênero oposto. As mulheres que trabalhavam como mascates podiam exercer habilidades que o trabalho em fábricas não lhes permitia, como a mobilidade — a liberdade de ir aonde quisessem e circular em espaços públicos sem serem impedidas por homens, que, na maioria dos casos, ocupavam posições sociais superiores. Dessa forma, as vendedoras ambulantes utilizavam esse ofício para alcançar independência financeira, física e pessoal.
A comunidade sírio-estadunidense via o comércio ambulante como um trabalho moralmente repugnante para pessoas de todos os gêneros, mas, no caso das mulheres, ele estava associado à honra e à sexualidade, enquanto, para os homens, relacionava-se apenas à mentira e ao engano. As primeiras feministas sírio-estadunidense, Afifa Karam (1883-1924) e Layyah Barakat (1858-1940), concordavam que vender para mulheres era um mau trabalho, pois as tentava a se envolver em atividades sexuais. Por que essas duas feministas não apontaram que vender para homens também era um mau trabalho — não porque eles enganavam os compradores, mas porque isso poderia incentivá-los a se envolver em atividades sexuais? Afinal, o trabalho sexual não é exclusividade das mulheres. Por que não havia discussão sobre a sexualidade dos vendedores ambulantes homens nesses periódicos? Eles tinham permissão para isso de acordo com as normas de gênero?
Conquiste seu espaço
Vendedoras ambulantes e rendeiras sírias em Spring Valley, Illinois, por volta da Primeira Guerra Mundial. Coleção Árabe-Americana Faris & Yamna Naff, Museu Nacional de História Americana.
Mesmo que seja verdade que algumas vendedoras ambulantes tenham se envolvido em atividades sexuais, isso não significa que elas representem todas as mulheres sírias imigrantes nesse aspecto, nem justifica associar a honra síria a um gênero específico ou a um papel econômico, naturalizando essa conexão. Mais importante ainda: não sabemos por que uma vendedora ambulante síria poderia se envolver no trabalho sexual. Seria por gratificação sexual? Ou apenas por ganho financeiro? Além disso, desconhecemos a situação social ou marital dessa mulher genérica — seria ela viúva, solteira ou casada?
A criação de uma ligação natural entre a sexualidade das vendedoras ambulantes e a honra síria resultou na deportação e estigmatização de mulheres sírias solteiras, que provavelmente trabalhariam como mascates, tanto por autoridades de imigração norte-americanas quanto pela comunidade síria. Além disso, esse puritanismo rigoroso limitou a liberdade das mulheres de migrar para fugir da opressão do Império Otomano e restringiu suas "escolhas de trabalho na diáspora" (Albrecht, 2023: 88).
As vendedoras ambulantes representaram uma mudança histórica nas normas de gênero e sexuais da comunidade sírio-estadunidense, já que os homens migrantes sírios da elite - que sustentavam normas misóginas e estavam encarregados da auto-regulação da comunidade - mostraram-se preocupados com esse tipo de trabalho e com o casamento. Devido à sua independência financeira e liberdade de movimento, as mascates mulheres representavam uma ameaça à normatividade das práticas matrimoniais. Diferentemente do período anterior à imigração, quando dependiam economicamente dos homens e estavam sob sua vigilância, na diáspora elas não estavam mais sob pressão para casar ou não.
Neste caso, as vendedoras ambulantes questionaram normas sociais sírias adicionais, como a reprodução social que a comunidade precisava alcançar para se integrar ao "supremacismo branco e heteronormativo estadunidense" (Albrecht, 2023: 92). Dessa forma, essas mulheres transcenderam as limitações costumeiras do casamento e do trabalho. Sírio-estadunidenses ricos e da elite, que ocupavam posição dominante na diáspora, opunham-se tanto à violência de gênero quanto à violência de classe contra as vendedoras ambulantes sírias. Assim, para definir o que constituía uma "mulher adequada" e depreciar uma mascate, a classe econômica e a normatividade sexual uniram-se nos periódicos vigentes da época. É isso que se atesta, por exemplo, no jornal Al-Jamiʿa (A Liga), em que Rosa Antoun, em artigo artigo intitulado “As Mulheres Sírias nos Estados Unidos” [ālsydāt ālswryāt fy ālwlāyāt ālmtḥdah], argumenta:
Eu disse "elas compram e organizam" porque as mulheres sírias nos Estados Unidos têm um grande mérito no crescimento dos negócios dos imigrantes. Muitos estabelecimentos comerciais devem sua riqueza original aos delicados dedos e aos esforços de uma jovem senhorita. Raramente você encontra uma família síria na América sem ver que a senhorita ou a senhora da casa tem um grande mérito - se não o maior mérito - na felicidade dessa família. Os estadunidenses respeitam as senhoras com uma consideração que elas nem mesmo têm na Europa. Um marido ou irmão, quando acompanhado por sua esposa ou irmã, vê todas as dificuldades se tornarem fáceis, especialmente neste país onde as mulheres trabalham como homens. Eu aprovo o trabalho feminino, desde que seja acompanhado pelo trabalho masculino, pois uma senhora ou jovem que trabalha ao lado de seu marido ou irmão não perde sua dignidade, pois tem ao seu lado quem a proteja e apoie sua fragilidade. Nossas irmãs são muito mais refinadas do que ouviram dizer ou do que estavam acostumadas a ver. Não estou lisonjeado, nem enganando, ao dizer que não lhes falta nada e que só precisam descansar. Mas afirmo que o que alcançaram até agora na América, deixando de lado incidentes isolados, é algo que merece orgulho e deve fazer suas irmãs no exterior mudarem de opinião sobre elas. Ganhar dinheiro não é suficiente. O alicerce sólido que gera progresso real é a alma da virtuosa senhora. Já começamos a ver virtudes emergindo entre as mulheres imigrantes. Quando cheguei a Nova York, soube de sua disposição para fundar uma associação feminina beneficente para ajudar a mulher síria neste país, e ajudar as imigrantes no centro de imigração, e colocar as meninas sírias nas escolas. Quando a associação de senhoras soube da chegada de uma viúva solitária com vários filhos ao centro de imigração, três membros desta nobre associação em Nova York foram ao centro de imigração - uma longa distância - para visitar a viúva e seus filhos, provendo-lhes conselhos, dinheiro e orientação, assumindo a responsabilidade por sua liberação e custódia perante a administração de imigração (Antun, 1899-1911: 489-492).
'O estadunidense [homem] despreza [as vendedoras ambulantes sírias] e as marca com depravação', afirmou Afifa Karam no jornal Al-Hoda. Como podemos ver no periódico Al-Jamiʿa, os estadunidenses nutrem respeito por mulheres abastadas que trabalham sob a supervisão de seus familiares homens. A respeito do trecho citado acima, Rosa Antun refutava as alegações feitas por mulheres sírias no Egito sobre a decadência moral das sírias trabalhando nos Estados Unidos nesta passagem. Segundo a autora, era preciso se orgulhar das conquistas de mulheres que trabalhavam sob a direção de seus homens e ignorar os casos anormais, que parecem ser exemplos de vendedoras ambulantes que tinham controle total sobre seus corpos, trabalhando independentemente de homens, e podendo ou não ter se envolvido em comportamentos sexuais anormais. Essas mulheres sírias de classe alta fundaram uma associação que defendia a educação das mulheres sírias. Rosa Antun dava um exemplo de como essa associação apoiava mulheres oferecendo orientação, instrução e apoio financeiro a uma viúva. "Não trabalhe no comércio ambulante" seria a orientação e instrução que deram a essa viúva? Essa associação era uma estrutura patriarcal porque suas fundadoras eram mulheres empregadas sob o domínio de seus homens, ou as vendedoras ambulantes tinham voz nessa associação?
Como ela poderia escrever sobre algo sem quaisquer vestígios, considerando que Albrecht (2023: 84) afirmou que 'as mulheres ambulantes [nestes periódicos] não eram representadas nessas perspectivas, e certamente não com suas próprias vozes'?
Em suma, acredito que o balanço feito por Albrecht seguiu as vozes que já estavam presentes para encontrar vozes que haviam sido abandonadas. Como se historiciza uma história que está sendo reprimida ou esquecida? Porque não havia vendedoras ambulantes falando nesses periódicos. Albrecht reconhece o apagamento das vozes dessas mulheres, buscando a ambiguidade em suas histórias suprimidas — daí a estruturação de seu trabalho como uma "história possível", e não como uma definitiva. Trata-se de algo que não é como é, porque não existe como é, mas sim como uma representação e como poderia ter sido.
Soma-se a isto a presença constante das movimentações intelectuais das comunidades árabes, neste caso nos EUA, a partir das publicações periódicas que, como em outros países do mahjar, reforçavam, ou desafiavam, as normas vigentes. A partir do trabalho de Albrecht, nota-se que, mesmo quando liberais e progressistas para seu tempo, mesmo iniciativas femininas minaram, como no caso de Rosa Antun, as possibilidades de desenvolvimentos maiores relativamente ao papel feminino e à transformação das normas de gênero, o que atesta os dilemas dentro da comunidade sírio-estadunidense, relativamente às normas e condutas transpostas a uma realidade nova.
(1) O gentílico “síria/sírio”, neste artigo, se relaciona aos nacionais advindos tanto da Síria quanto do Líbano e, portanto, à região designada como Grande Síria. Era comum que, do século XIX até meados do XX, sírios e libaneses fossem nomeados pela generalização “sírios” (Nota dos editores).
(2) As citações de Albrecht, Rihani e Antun serão, ao longo do texto, traduzidas diretamente do inglês (Albrecht e Rihani) e do árabe (Antun) (N.d.E.).
Referências:
Albrecht, C. K. 2023. Possible Histories: Arab Americans and the Queer Ecology of Peddling. Oakland: University of California Press.
Rihani, A. 2012. The Book of Khalid. New York: Melville House Publishing.
Entrevista com Charlotte Karem Albrecht. Jadaliyya, https://rb.gy/i0wsgv. Accesso em 10/11/2023.
أنطون، فرح وآخرون، الجامعة، السيدات السوريات في الولايات المتّحدة، روزا أنطون،1899-1911 .
Eithar Daher é mestre em Literatura Comparada (Estudos Ocidentais e Árabes), pelo Doha Institute para Estudos Pós-graduados. Pesquisadora, realiza atualmente um segundo mestrado em Relações Afro-Árabes no Africa Institute (Sharjah, EAU). É membro do Native American and Indigenous Studies Association (NAISA).