ZIAD AL RAHBANI SE QUEBRA, MAS NÃO SE DOBRA

Rachid El Daif

Traduzido do árabe por Yara Osman


Texto publicado originalmente na revista Al-Wasat, por ocasião do lançamento do álbum Bima Inno (1995), de Ziad Al Rahbani.
A Al Jaliah agradece ao autor pela permissão para tradução.


Nota dos editores da Al Jaliah

Em 26 de julho de 2025, o Líbano foi tomado de surpresa pela morte de Ziad Al Rahbani. Um representante artístico, político e intelectual intergeracional, Al Rahbani, era filho de Fayruz e Assi Al Rahbani. Ziad foi um eterno inconformado. Com humor mordaz, criticava a sociedade libanesa em suas peças, e transformava a linguagem musical a partir de letras inteligentes, não raro, inclusive, escritas no libanês coloquial, e melodias rebuscadas, que construíam um diálogo entre ritmos do Levante, o jazz, a bossa nova e o samba (Ziad foi o responsável pela introdução da música brasileira no país). Politicamente, Ziad foi ativo durante a Guerra Civil libanesa e, com o passar dos anos, declarou seu apoio ao Hezbollah e ao regime Assad, na Síria, algo que lhe rendeu críticas e um fato que demonstrava a complexidade de sua personalidade. As imagens do velório de Ziad, visitado por personalidades das mais distintas, mostram o quanto ele foi capaz de exprimir, em si, as contradições do Líbano. Se Fayruz é a metáfora de um Líbano que morre e ressurge constantemente, Ziad é a alegoria de sua própria terra: sua música e suas peças, usando imagens que parecem, a princípio, aleatórias, permitem que falemos da multiplicidade de dores, horrores, alegrias e amores de um país que resiste nos menores detalhes, dissonante, como os acordes brasileiros do piano de Ziad.

Ainda largamente desconhecido ao público brasileiro, publicamos uma tradução inédita do texto de Rachid El Daif e, conjuntamente, em nosso perfil do Spotify, uma playlist de algumas obras de Ziad Al Rahbani.


Confesso, antes de tudo, que escrever sobre Ziad Al Rahbani é uma responsabilidade. Confesso também que, por sentir o peso dessa responsabilidade, hesitei muito antes de concluir estas palavras.
Quero apenas registrar algumas observações que me inspiraram as letras deste novo álbum, Bima Inno, a partir do que foi sobre elas se escreveu e de minha leitura.
O que me levou a escrever sobre essas letras foi a importância que sinto nas palavras escritas por Ziad Al Rahbani em geral, bem como a percepção de que a crítica feita a ele é insuficiente e incapaz de encontrar novos termos que lhe sejam adequados e compatíveis. A régua com a qual se mede o trabalho deste homem deve ser substituída. A crítica precisa inventar uma nova linguagem para poder acompanhar sua experiência, enriquecer-se com ela e enriquecê-la.
Em tudo o que foi escrito sobre as letras deste álbum, repete-se sempre que são “populares” — o mesmo que se repete após cada trabalho de Ziad Al Rahbani. A meu ver, é a primeira coisa que precisa ser revista.
Minha opinião é a de que as letras de Ziad Al Rahbani, ao contrário do que dizem sobre elas, não são populares. Atribuir-lhes essa característica vem de não se perceber a diferença essencial entre uma “linguagem coloquial” falada pelo povo em geral, e aquilo que é considerado “popular”.
O coloquial é simplesmente o idioma cotidiano das pessoas;— de todas elas: velhos e jovens, ricos e pobres, instruídos e analfabetos, “o Estado” e “o povo”. Ele pode ser popular, vulgar, refinado, poético, científico ou qualquer outra coisa, pois dentro do coloquial existem níveis.
Há, portanto, uma tendência entre nossos críticos de confundir esses dois termos, o que exige este esclarecimento.
Por que as letras deste álbum não são populares? (Creio que essa pergunta se aplica a toda a sua obra).
Porque o que é popular não critica a moral vigente; ao contrário, a defende. Quando critica, atacando “o Estado”, “o governo” ou “os responsáveis”, o faz em nome dessa moral dominante. O popular é, na verdade, guardião dessa moral e fiador da sua continuidade.
Além disso, o popular costuma ter como objetivo o entretenimento, e um bom tempo de conforto, que permite ao ouvinte se entregar ao popular, pois ele fala frequentemente de mágoa, dor, ausência, encontro, saudade, união etc.
O popular parte das crenças e premissas da maioria e a elas se adapta, sobretudo ao gosto do povo (no sentido estético). Não se afasta do familiar para não “ferir” ou incomodar esse gosto, cujo modelo de referência é o passado fixado na memória.
Resumindo, o popular evita dois campos:

1: A moral (enquanto conjunto de princípios que regem nosso comportamento como indivíduos e grupos) e, por extensão, a política (no sentido amplo).

2: O gosto artístico herdado.

Já nas letras de Ziad Al Rahbani encontramos exatamente o oposto: nada as aproxima do popular, no sentido em que o defini. Suas canções são feitas para atingir alvos na moral e no gosto! Mais do que isso: não penso estar errado ao dizer que carregam um projeto de transformação ética (e, por extensão, política) e estética.
Suas palavras nos colocam questões difíceis, que nos inquietam. Não nos consolam com a dor da separação nem com a doçura do reencontro, mas expõem, exatamente como na vida real, o doloroso “cabo de guerra” entre mulher e homem, pares complementares de um todo. Assim, sentimo-nos convidados, ainda que por um convite inconsciente, a pensar em como tornar a relação entre homem e mulher mais humana, regida por uma ética diferente da dominante.
E como essas letras carregam um projeto ético, são também políticas — mas políticas no sentido amplo: seu objetivo é expor as teias mentais que nos levam a comportamentos que a razão não deveria aceitar.
Por isso, podem ser facilmente interpretadas como críticas a este ou aquele ministro, a esta ou aquela autoridade… e são, de fato, contra eles — mas isso não é o mais importante. O essencial é aquilo que está em nossas cabeças, de ministros a cidadãos comuns. É um chamado para tratar da raiz e da essência.
Suas letras tocam nervos centrais da fala cotidiana — aquela que todos usam todos os dias — e captam suas manhas para, por meio delas, penetrar no pensamento das pessoas, nas formas inconscientes de raciocinar e nos conceitos que regem o comportamento delas: o permanente e fixo.
Essas letras são uma dissecação das armadilhas do nosso pensamento diário (o permanente), uma iluminação súbita do cérebro em pleno funcionamento.
Se a “autoridade” é mais visada, é porque talvez se beneficie mais — mas a diferença entre ela e o cidadão comum é apenas de grau, não de essência, pois a autoridade de maior grau e o cidadão de menor, ambos compartilham da mesma estrutura mental. E não há ninguém que não cante a sua própria canção. Por isso, se pegássemos as letras do álbum, palavra por palavra e frase por frase, não encontraríamos nada que não fosse partilhado por todas as pessoas, independentemente das suas diferenças de grau ou nível.
Por outro ângulo, essas letras rompem com o convencionalismo poético das canções em geral, e das populares em particular.
Talvez o que leva muitos a acreditar que sejam populares seja o fato de estarem escritas num coloquial puro — algo que não encontramos em outros autores, cujos textos estão cheios de construções formais disfarçadas de coloquialidade.
A vitalidade dessas letras, creio eu, vem justamente de sua total ausência de pretensão poética: não há busca por metáfora, comparação, hipérbole, sentimentalismo ou lamento. Não há o “charme” habitual. Essas palavras — as de Ziad — não são poesia; são palavras vivas.
Por isso o ouvinte às vezes perde o equilíbrio ao escutá-las: está acostumado a versos que assemelham o rosto à lua ou os olhos ao mar, e de repente encontra-se fora de um ambiente familiar. Porque toda novidade não somente surpreende, mas também choca, sobretudo quando é radical.
Ziad se recusa a colocar o ouvinte em qualquer lugar que não seja o cerne da questão. No centro do impasse. É exigente. Não se contenta senão com a pergunta fundamental. Vai sempre à essência, não se distrai com o que considera secundário (perguntou, numa de suas peças, se o urso era muçulmano ou cristão!). Aponta nossas tragédias sem rodeios nem complacência.

Ziad Al Rahbani se quebra, mas não se dobra.

Ziad não é complacente, e isso é extremamente exaustivo: torna difícil manter relações harmoniosas com pessoas, instituições, referências, etc. A complacência é um pecado grave cometido por muitos que se consideram defensores de causas (especialmente intelectuais). E a mais perigosa das complacências é para com as crenças do “povo” — mais grave ainda do que para com o “sistema”, “o poder” ou “o capital”.
Será que essa firmeza não esconde uma ternura, uma fluidez? Será que essa raiva não oculta um amor maior?
Será por isso que ele é tão amplamente ouvido?


Rachid El Daif (رشيد الضعيف), nasceu em Zghourta, Líbano, em 1945. É doutor em Letras Modernas pela Sorbonne, onde lecionou árabe, e escritor. Relacionado à esquerda progressista do país, particularmente ao Partido Comunista, durante a década de 1970, El Daif tornou-se uma voz autônoma e crítica dentro da esquerda de seu país, algo refletido em sua literatura, que aborda problemas relacionados à Guerra Civil, às relações de gênero e raça e à própria herança literária árabe, através de seus estudos sobre Jurji Zaydan e a mitologia e contos de fadas árabes.


Escute a playlist da Al Jaliah com seleções da obra de Ziad al Rahbani!

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